Chupa, chupa, chupa no dedo

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Depois do pindérico Man to Man, o Festival de Berlim subiu de nível com a exibição de Thumbsucker, um filme independente americano que marca a estreia de Mike Mills na realização. Mills tem uma carreira muito bem sucedida no domínido dos videoclips (Moby, Divine Comedy), da publicidade (Levis, Nike) e do design gráfico, mas só agora se lançou no campeonato das longas-metragens. Ao contrário de boa parte dos realizadores que transitam do território comercial para o cinema, Mills deixou em casa a pirotecnia visual, a montagem frenética e a aceleração supersónica. Thumbsucker é um filme pausado e calmo sobre um adolescente de 17 anos que não consegue parar de chuchar no dedo.

O elenco conta com muitos nomes de prestígio - Tilda Swinton, Keanu Reeves, Vincent D'Onofrio, Vince Vaughn -, demonstrando que as estrelas de Hollywood estão cada vez mais atentas ao mercado independente, cheias de vontade de participar em filmes de prestígio e desejosas de acertar no next big director. Dizer que Mike Mills, que também escreveu o argumento, vai ser "o próximo" é certamente um exagero, porque por enquanto ele não tem o estilo nem a originalidade dos maiores, mas não há dúvida que Thumbsucker tem a sua graça. As maiores fragilidades do filme, aliás, prendem-se com o facto de nem sempre estar à altura da excelente ideia inicial.

Porque chupar no dedo, como já nos explicava essa grande cantora pimba chamada Micaela, é apenas uma metáfora de uma situação disfuncional Justin (interpretado pelo jovem Lou Pucci, que já dera mostras de ter jeito para o ofício em Velocidade Pessoal) chucha no dedo porque se sente inseguro com o mundo que o rodeia. Não percebe os pais, não percebe a escola, não percebe a namorada e, sobretudo, não se percebe a si próprio. Quando um dentista com queda para a espiritualidade (Keanu Reeves, num papel de cabotino que lhe assenta como uma luva) o livra do vício da sucção, retira a Kevin a base de apoio e ele desequilibra-se. Sem o seu polegar está perdido no mundo, e Thumbsucker conta o caminho para se reencontrar, num tom a baloiçar entre o drama e a comédia, com final feliz - ou seja, um polegar novamente enfiado na boca. Micaela haveria de gostar.

LOUCURA. Já o filme que se seguiu a Thumbsucker nada tem de feliz. Asylum é uma história escura como breu situada na Inglaterra da segunda metade do século XX e centrada numa instituição mental, onde há um tabu que se vai quebrar a mulher de um dos médicos envolve-se com um paciente perigoso. Ele (Marton Csokas) espancou a sua esposa até à morte por causa do ciúme; ela (Natasha Richardson) encontra nele a paixão que há muito deixou de sentir pelo marido.

O realizador David McKenzie utiliza aqui a mesma mistura de erotismo e negrume que já encontrávamos no seu celebrado Young Adam, mas a peça fundamental nesta engrenagem é o escritor Patrick McGrath, que elaborou o romance de onde nasce o filme. McGrath é também o autor de Spider, que David Cronenberg transpôs para o cinema, e é realmente assustadora a forma como ele desenvolve estes dramas psiquiátricos (sabe do que fala o seu pai era médico num hospício), que põem em causa a linha que tradicionalmente separa a sanidade da loucura. Aliás, na conferência de imprensa que se seguiu ao filme, McGrath tocou precisamente nesse ponto, explicando que o grande objectivo do seu romance era questionar a diferença entre o amour fou e a doença. Em Asylum, o amor daquela mulher por aquele homem é de tal ordem que ela deixa desmoronar tudo à sua volta, até nada ficar para além de um corpo estilhaçado.

RUANDA. O terceiro filme do dia a passar na competição - embora fora de concurso - foi Hotel Ruanda, de Terry George, que vai estrear em Portugal já no dia 17 e está nomeado para três Óscares, dois dos quais reconhecendo o esforço dos principais actores, Don Cheadle e Sophie Okonedo. E, de facto, eles são, de muito longe, o melhor que Hotel Ruanda possui. A história tem todos os requisitos para deixar a Berlinale presa pelo beicinho - a denúncia política do genocídio dos Tutsis em 1994 e um herói humanista, que se recusa a pactuar com a tragédia africana -, mas como se sabe é muito, muito raro as melhores intenções transformarem-se em bons filmes. Hotel Ruanda tem boas intenções e um elenco esforçado. Só lhe falta ser um bom filme.

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