Cego

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O amor responde como nada à desmotivante ideia de que já tudo foi dito ou feito. E Willow Drive, como todos os filmes ou coisas que resultam dele, é um belo exemplo disso. Exibido no Festival de Vila do Conde, na sessão competitiva internacional da passada quinta-feira, foi uma resposta sem respostas, inspirando perguntas. Passa-se numa estrada de que não vemos o início nem o fim, entre personagens de quem não vemos a superfície nem o fundo. Mas alguma coisa se insidia no espírito, visto o filme. E diz-nos que o amor, estranho ou não, não é um lugar.

Jakob Rorvik (Reino Unido), o realizador, ambienta a sua história num bairro inglês de subúrbio,

tranquilo, aparentemente a salvo de bizarrias. A própria calma com que o filma induz a isso. Ouve-se uma guitarra dolente e é o seu som que a câmara passa a perseguir, le-vando-nos ao encontro de um adolescente que imediatamente se percebe ser tímido, reservado. Quando ele sai de casa, para passear os três cães (que confirmam a tese de que os cães adquirem a personalidade dos donos), cruza-se com o pai, que lhe diz apenas, numa perturbadora distância, que os carros não nos le-vam a lugar nenhum. Mais adiante o rapaz descobre uma mulher desmaiada na rua, que, já recomposta, lhe confessa estar habituada a cair ali. É entre eles que, do nada, acontece uma noite de sonho, sem antes e sem depois, como a estrada onde se conheceram, e ao som de um dis-co em cuja bolacha está inscrita a imagem de um carro.

Feito com a sensibilidade certa, aberto nas pontas mas encantador no meio, é uma metáfora do amor enquanto sentimento que nos atravessa, vindo não se sabe de onde e ido não se sabe para onde. É revigorante ver que uma curta dá para tanta coisa. Pela minha parte, e até agora, está escolhido o melhor fil-me do festival.

O mesmo tema versa Dimmer, mas noutra óptica. Noutra óptica, como quem diz, já que é um filme de cegos. Mas nem isso os impede de ver - e aquilo que não está à vis-ta. Passa-se também num bairro, só que este é nova-iorquino e aparentemente conturbado. As personagens são todas cegas, adolescen- tes em busca de amizade, de grupo, mas também permeáveis ao amor, que se diz ser terreno deles. Não é tanto assim, queixa-se um, no fim, enquanto diz «Eu não vejo, mas a gaja era mesmo feia». Realizado por Talmage Cooley (EUA), ao som dos Interpol e passado entre casas próprias e fábricas abandonadas, não tem a pretensão de ser um en-saio sobre a cegueira, mas ensina-nos a ver melhor algumas das circunstâncias interiores em que os cegos vivem.

Nesta perspectiva da revelação de cargas de vida, outro filme que sai da mediania é La Peau Trouée, de Julien Samani (França), um do-cumentário sobre a pesca do tubarão. São cinco os lobos do mar que deixam as suas casas para navegar dias a fio com o fito de assassinar o peixe assassino. A banda sonora, incessante, é o motor do barco. Os cigarros não param de sair dos bolsos. Mas o que mais perturba é o si-lêncio daqueles homens, um silêncio-ilha, rodeado de mar por todos os lados. Um silêncio que nos liga, afectivamente, a cada um deles.

É talvez por isso que se revela tão forte a visão da pesca, onde se expõe em bruto a animalidade hu-mana. Entre isso e as brincadeiras que um dos homens tem com a fi-lha, à chegada, a distância é o mar que a dita, mais nada. Um mar filmado a gosto, por quem o conhece.

A «gulodice» francesa. Na galeria dos filmes acabados, com princípio, meio e fim, segundo os preceitos convencionais, French Kiss, do francês Antonin Peretjako, não deixa de ter alguma piada, embora v á para lá da conta no destrambelho. Formalmente delicodoce, reve-la ainda assim um travo ácido que evita o enjoo, sobretudo na conexão entre o amor e a política mundial, com farpas sucessivas à gestão americana.

Há uma rapariga que supostamente vem dos EUA e um rapaz a quem um amigo, primo dela, pede para a acolher. No fim é tudo uma farsa, um embuste de amor. Ela é francesa e cumpriu o seu objectivo, selado com o french kiss do título, a culminar uma série de gags, atropelos e acontecimentos próprios do burlesco, embalados em easy listening e spy music.

ENTRE NÓS. Quanto aos portugueses, e tirando 3 Postais da Etiópia (+3), de Pedro Caldas (ver comentário), a sessão não foi exactamente má, apesar de também nada ter havido de memorável.

Basement Videoclip, de João Seabra, é exactamente isso, um videoclip dos Basement, banda que milita entre o hard rock e o metal. Usando técnicas variadas de animação, cria um ambiente coerente com a estética do grupo, enchendo a tela de elementos que, de início parados, ganham vida assim que a música arranca. Está bem feito e é claro na ideia que se propõe materializar.

De Joana Toste, pelos vistos, é que não haverá, para já, grandes surpresas a esperar. A realizadora segue, em Menu, os processos aplicados noutras fitas, como ADama da Lapa, o seu mais conhecido, on-de criativamente se revela melhor, sobretudo do ponto de vista da história. Esta, no novo filme, é trivial, supõe-se que conscientemente, fa-lando de um homem que procura o cabelo perdido. Vê-se, não morde, mas também não aquece.

Já Um Homem, de Laurent Si-mões, tem que se lhe diga. Poderia ser introduzido como "a joint by", à boa maneira de Spike Lee, só que aqui pelo ambiente stoned em que se (des)enrola. É um produto orgulhosamente low-fi, com dois protagonistas africanos em diálogo mi-nimal-repetitivo, num registo pim-py que garante boas gargalhadas. A imagem da mulher é que não sai dali muito bem tratada.

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