Antes de se perder o teto, passa-se fome, pede-se dinheiro emprestado, deixam-se contas por pagar. A casa é o derradeiro reduto e, também, a última das perdas. Em 2012, 5500 famílias portuguesas entregaram imóveis aos bancos por não conseguirem pagá-los. «E sessenta por cento das pessoas que pagam créditos à habitação estão neste momento em apuros», diz Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP). «Em relação a 2011, até há um decréscimo de 21 por cento nos imóveis entregues em dação, porque os bancos perceberam que não tinham alternativa senão renegociar os créditos. Mas muita gente está apertada e a tentar encontrar soluções engenhosas. Estamos a viver o momento do tudo por tudo para manter a habitação. Há a consciência de que perder a casa é uma queda da qual dificilmente se consegue recuperar.» . A crise económica e o crescimento do desemprego também estão a criar novas formas de habitar. Muitas famílias põem a sua casa a alugar e mudam-se para os subúrbios, outras alugam quartos e algumas têm de voltar para casa dos pais. Em Lisboa - onde, segundo os censos de 2011, 35 por cento da população vive sozinha -, há pessoas a juntarem-se para dividir casa ou alugar quartos. Nas franjas mais pobres, avisava há meses o presidente da APEMIP, há cada vez mais famílias a partilhar ou a dividir partes de casa. «A perda de privacidade é um dos traços mais evidentes deste fenómeno e, claro, isso potencia o stress doméstico», diz Sandra Marques Pereira, investigadora do Centro de Estudos sobre a Mudança Socieconómica e o Território e especialista em sociologia da habitação. «Nas duas últimas décadas do século xx houve uma melhoria brutal nas condições dos lares portugueses. Mas não me admiraria se agora aparecessem novas barracas e situações de sobreocupação.» . No livro Casa e Mudança Social, Sandra Marques Pereira traça uma evolução habitacional da sociedade portuguesa nas últimas décadas. «As casas do salazarismo espelham a autoridade, têm inclusivamente zonas separadas para os empregados. Nos anos cinquenta introduz-se um ideal de família mais democratizado, que se generaliza duas décadas mais tarde. A sala de estar e a sala de refeições são o mesmo espaço, os aposentos da criada desaparecem e começa a privilegiar-se a intimidade dos quartos. No final do século, o modelo social torna-se mais descontraído, há uma tendência para anular a separação entre a sala e a cozinha.» Agora, diz a socióloga, prevê-se um aumento do mercado de arrendamento, não tanto porque os preços dos alugueres tenham descido, mas simplesmente porque os bancos deixaram de conceder créditos. «A habitação é mais uma consequência do nosso modo de vida do que uma causa. Se neste momento temos uma apetência maior para a ideia de transitoriedade, e às vezes de precariedade, as casas vão incorporar isso.» . O sonho da casa própria está morto. Nas décadas de oitenta e noventa, Portugal tinha dinheiro europeu, crescimento económico e crédito fácil. «Até há três anos, setenta por cento do mercado imobiliário queria comprar casa, agora é o mesmo número que quer arrendar», confirma Luís Lima. «Hoje há uma necessidade de não se ficar preso a obrigações, porque o futuro é incerto.» Então as pessoas juntam-se, partilham e dividem, aguçam o engenho para resolver a necessidade. Esta é uma viagem à luta silenciosa que milhares de portugueses, de todos os escalões sociais, estão a travar para preservar um teto. A habitação condigna, dizem as Nações Unidas, é um direito fundamental do homem. . Casas que morrem . Em 1989, o Economist Intelligence Unit, um grupo britânico que faz consultoria financeira a vários estados, publicou um relatório sobre Portugal em que, entre outras coisas, explicava que, nos anos setenta, 53 por cento da riqueza nacional pertencia apenas a dez famílias. Os Abreu, de Amarante, contavam-se entre esses nomes. A fortuna foi ganha a pulso por José de Abreu nos anos cinquenta, quando fundou uma unidade de produção de aglomerados de madeira que, em pouco tempo, haveria de tornar-se a maior fábrica da Península Ibérica e uma das maiores da Europa. A Tabopan, como a Gilette ou a Tupperware, não era só a empresa - era também, em linguagem corrente, o nome do produto. Antes do 25 de Abril, os níveis de faturação estavam nos cinquenta milhões de euros anuais. Depois da revolução e da entrada no espaço Schengen, as coisas começaram a correr mal. . Quem sobe a montanha e observa Amarante do topo de Fregim consegue bem perceber a extensão do que um dia foi o império Abreu. Várias unidades fabris precipitam-se vale abaixo e, exceção feita a um grupo de edifícios que a autarquia recuperou para transformar em parque industrial, todas elas estão votadas ao abandono. Ali chegaram a trabalhar 2700 pessoas. «Exportávamos para 57 países», lembra Mário, 58 anos, filho de José de Abreu. A Tabopan fechou definitivamente portas em 1991 e José de Abreu morreu uma década depois. A maquinaria foi vendida como sucata - e a maior parte dela serviu para pagar ordenados em atraso e dívidas acumuladas. Pouco mais restou aos Abreu do que um palacete do século xvi , que é a casa de Mário Abreu. . É um edifício impressionante. José de Abreu comprou-o em 1963 ao visconde da Granja, cujo brasão de granito ainda hoje enfeita a fachada. A maioria dos 33 hectares de terreno que lhe pertenciam há muito que foram vendidos e, no chão que resta, as silvas estão a ganhar o combate. No piso térreo há uma enorme adega, que a casa tinha produção própria de vinho. Também há a área onde os rapazes da família passavam o tempo. Uma sala grande, apinhada de sofás, discos e jogos, e dois quartos pequenos, onde dormiam as criadas. Uma camada de pó cobre todas as superfícies, incluindo uma excelente coleção de vinis de Led Zeppelin e Sinatra. . O primeiro piso é território de fantasmas. Contam-se quatro quartos com camas de dossel, de madeira talhada por mãos experientes. Alguns têm casas de banho embutidas em mármore. Há uma sala de refeições, onde uma enorme mesa senhorial tem espaço para sentar uma boa vintena de comensais. Ao lado um salão nobre, repleto de pinturas realistas e um relógio de pé extraordinário, parado às 16h18. Depois uma sala de música, enfeitada por um piano desafinado, jarrões chineses que são pátria dos aranhiços, um quadro de Júlio Pomar. A biblioteca alberga uma coleção de livros antigos, enciclopédias e os livros de contas da Tabopan. As paredes estão forradas por comendas, ordens de mérito, uma carta de agradecimento de Marcello Caetano, mais um par de fotografias de José de Abreu com o papa. Há um oratório cuja porta já não fecha, ocupa uma divisão inteira e tem no centro uma estátua de Nossa Senhora em tamanho natural. A cozinha e a copa, tal como o resto da casa, preservam os adornos do teto. No sótão, existe uma divisão para guardar roupas e outra para guardar chapéus. . Mesmo coberto de pó e desarrumado, não deixa de ser um solar tão vetusto quanto esplêndido. Cada peça de mobiliário, de loiça, ou cada tela, vale uma pequena fortuna. E no entanto Mário Abreu, o último habitante da casa, há muito que deixou de pagar contas de água ou de eletricidade: «Não posso pôr-me a vender coisas porque há vários herdeiros e as partilhas não estão resolvidas.» A sua teoria é esta: «Há mais riqueza em Portugal, mas está ainda pior distribuída do que no tempo do salazarismo. As grandes famílias, que possuíam as grandes casas, já não as podem manter.» O menino Mário, como foi tratado toda a vida, frequentou colégios internos e viajou pelo mundo, mas vive há semanas a seco e na escuridão. Até que decidiu pedir ajuda aos amigos. . José de Abreu parece ter adivinhado o que estava para acontecer. Dois anos antes de morrer, numa entrevista a Maria Filomena Mónica para o livro Os Grandes Patrões da Indústria Portuguesa , dizia: «Os pais começam do nada, os filhos já têm mais qualquer coisita e os netos são criados a pensar que isto é uma mina de ouro que nunca mais se esgota. É aí que começam os problemas.» A fortuna da família não chegou sequer à terceira geração. E Mário vive em tal desespero que os Sousas decidiram acolhê-lo em casa. Há três ou quatro décadas, o homem estava proibido pelo pai de falar aos Sousas. Porque eram funcionários da Tabopan - e os meninos de família não tinham nada que falar com os empregados. . Na mesma medida em que a casa dos Abreu mirra, a dos Sousas estica. Ali vivem Maria do Carmo, dois filhos, a nora e as netas. A avó desunha-se a trabalhar nas limpezas do pavilhão desportivo. Jorge, que nos anos de juventude esteve na seleção nacional de canoagem, voltou há um par de meses do Algarve com a mulher, as filhas, uma mão à frente e outra atrás. «Eu andava nas obras, a minha esposa a fazer camas nos hotéis. O meu trabalho começou a escassear e à Leandra não a quiseram passar a efetiva, mandaram-na embora.» Meteram-se no carro pelas estradas nacionais e bateram à porta da mãe. «Entrem.» . Foi João quem trouxe Mário Abreu para casa. O filho mais velho da família Sousa fez os estudos, trabalhou vários anos como técnico numa rádio local e foi lá que conheceu o amigo magnata - Mário trazia os discos de Londres e fazia programas de música que eram, segundo ambos, «um espetáculo». Agora, João é repórter de imagem de uma televisão online e, como as coisas estão mal, passou a ganhar o ordenado mínimo. «Ia fazendo uns espetáculos de karaoke para ganhar mais uns trocos, mas ao fim de um tempo percebi que também já não podia pagar a renda de casa.» Tentou resistir, mas chegou a um ponto em que não pagava a água e andava a tomar banhos no Tâmega. Falou com a mãe e combinaram juntar-se numa casa maior, dividindo despesas. . Os Sousas vivem num T3 em Amarante, pelo qual pagam mensalmente 320 euros. No quarto da avó dormem as duas gaiatas, Jorge e Leandra têm um quarto para eles e João outro para si, que é também onde trabalha. Mário Abreu dorme no sofá e cada ocupante da casa contribui com o que pode. «O espaço é apertado mas ainda dá para comer todos os dias uma sopa», vaticina Maria do Carmo. «E se não der, também vamos ali ao pomar roubar fruta. Ai não.» E escangalham-se todos a rir. . Contas de dividir . A geração que agora está a chegar aos 40 anos criou um novo paradigma habitacional. Foi a primeira a estudar maciçamente, o que obrigou muita gente a mudar-se para outra cidade e a partilhar casa. Foi a geração que apanhou com a abertura de fronteiras ou o nascimento do programa Erasmus, o que lhe colou à pele a perspetiva de transitoriedade. Nenhuma outra geração teve tanta gente que, primeiro, viveu em comunidade e, depois, morou sozinha. Mas há sintomas de que algo está a mudar. . António Pires tem 40 anos e é jurista. Trabalha na Segurança Social há 15 anos, em Lisboa, e, entre 2009 e 2011, foi assessor da secretária de Estado da Igualdade, Elza Pais, para os assuntos jurídicos. Vive em Almada, numa casa que comprou pouco antes de casar. «Divorciei-me em 2006 e tentámos vender o apartamento. Nunca conseguimos, então eu fiquei aqui.» Até agora. Há uma semana, António decidiu colocar a casa para alugar. «É impossível comportar as despesas. Por isso, vou sair daqui, arrendar para conseguir pagar o empréstimo ao banco e partilhar casa com uma amiga.» . Ganha mil euros por mês. Quatrocentos vão para a casa e 118 para as despesas fixas. De condomínio são mais 35 euros mensais e de IMI 200 por ano, «que causam muito transtorno porque sou funcionário público e não recebo subsídios». Do passe para chegar todos os dias ao trabalho paga 62,30 euros. «O pior foi em 2008, quando as taxas de juro subiram. Pagava 600 euros ao banco e não tinha dinheiro para comer. Então arranjei um segundo emprego, num call-center , onde trabalhava quatro horas por dia para ganhar 200 euros por mês.» . Rita Escobar, 37 anos, vai dividir com António a casa onde agora vive. «Ele fica na sala, eu no quarto e dividimos as despesas.» São amigos de longa data, conheceram-se na Segurança Social, onde ambos trabalharam como educadores em centros de acolhimento. Rita foi a primeira licenciada da família, estudou línguas, mas preferiu trabalhar com crianças em risco a dar aulas numa escola. «No verão de 2011, após dez anos a fazer isto, despedi-me. Já não conseguia dar mais de mim, estava vazia. Então juntei-me a uma amiga e decidimos abrir o nosso próprio negócio.» . O Alfacinhas, no Cais do Sodré, é um bar aberto até tarde, onde se serve a comida à massa boémia que todas as noites ocupa as discotecas do novo bairro da moda. «As coisas começaram bem, mas não conseguimos licença até às quatro da manhã, que era o nosso objetivo. É depois das duas que fazemos dinheiro, mas a câmara não deixou.» As sócias decidiram apertar o cinto: só poderiam garantir um ordenado de 600 euros para cada uma. . Rita vive numas águas-furtadas no bairro lisboeta do Príncipe Real, pelas quais paga uma renda rara: 295 euros. Abdicou da internet e da televisão, poupou nas compras e, durante meses, arranjou maneira de conseguir pagar as contas. Com a subida do IVA na restauração de 13 para 23 por cento, diz ela, a perspetiva de ter um negócio próprio tornou-se uma miragem. «Tentei ter iniciativa empresarial e um modelo que fazia sentido, mas sinto que são as próprias medidas do Estado a travar o empreendedorismo.» O estabelecimento continua de portas abertas, mas já não garante dois salários de 600 euros. Agora a sua vida é servir copos todas as jornas na discoteca Roterdão, ali ao lado, onde já fazia algumas noites ao fim de semana. . Rita diz que não vai partilhar uma casa que já é apertada com um amigo para melhorar o nível de vida, «mas para manter apenas um mínimo de dignidade». Talvez volte a ter internet em casa, sim, e talvez o amaciador para o cabelo deixe de ser um luxo. António alinha na mesma batuta. «Que raio de vida é esta se não pudermos ter outra perspetiva que não a da sobrevivência?» Dividir casa não será assim tão difícil, vaticinam ambos. Estudaram os dois longe das cidades onde nasceram, Rita cresceu numa casa com cinco irmãos e António longe dos pais, numa instituição para crianças. A divisão do espaço subtrai privacidade às suas vidas, mas não deixa de somar conforto. . Pedro Escobar, irmão de Rita, foi por outro caminho. Há pouco mais de dois anos, terminou uma relação e saiu de casa. É assistente de realização, trabalha como freelancer em televisão e publicidade, áreas que estão a sofrer uma crise profunda. Tem 45 anos. «Vi-me com sérias dificuldades financeiras e acabei por alugar um quarto. Não foi uma decisão fácil, nunca é isto que uma pessoa imagina para si própria. Há uma sensação de falhanço, mas hoje até me sinto feliz com a opção que fiz.» . Quando se mudou, viviam no apartamento sobretudo estudantes. Hoje, os seus companheiros de casa são Marta Mendes, uma bióloga de 29 anos, e Tiago Vieira, um economista de 22, que chegou quando ainda estava a tirar o curso de Economia e foi ficando. Cada um tem um quarto espaçoso, pelo qual paga 250 euros, água, luz, gás, internet e televisão por cabo incluída. Há duas salas comuns que não são praticamente utilizadas. A vida comunitária faz-se na cozinha, onde cada um tem as suas prateleiras para guardar alimentos. É uma casa luxuosa, em abono da verdade. Fala Marta: «Sou bolseira e estou a tirar o doutoramento, ganho 980 euros por mês. Alugando um quarto posso viver na zona da cidade onde quero, ter hábitos culturais, fazer viagens.» . O apartamento fica nas Amoreiras, em Lisboa, e os seus habitantes não podiam estar em fases mais distintas da vida. Tiago, o economista, está nos primeiros anos de vida laboral, e o seu objetivo a médio prazo é sair para viver com a namorada. Marta está no último ano de bolsa, é uma investigadora promissora, mas tem poucas opções de triunfar em Portugal. «Eu não queria sair, mas recebi uma proposta para fazer investigação na universidade de Cornell, que pertence à Ivy League [o grupo das oito universidades de topo da costa leste dos Estados Unidos], e não vejo grandes alternativas no meu país.» Pedro tem uma filha adulta, as suas preocupações maiores são assegurar o pagamento da renda do quarto e da universidade da filha. Enquanto a vida não mudar, não sai dali «nem que a vaca tussa». . A luta das classes . Mesmo na Baixa do Porto, longe do olhar de quem passa na rua, há uma cidade extinta que tende a ressuscitar. Uma ilha de habitações proletárias esconde-se junto à Rua do Paraíso - 36 casas, sem banho nem divisões, que a autarquia mandou encerrar a bem da saúde pública. Um grupo de arquitetos comprou os antigos imóveis, vai transformá-los em casas baratas. O mercado precisa cada vez mais de habitação a baixos custos, seja para alugar seja para vender. . Alexandra Santos percebeu isso mesmo na aurora da crise. Há três anos, comprou dois prédios na Rua do Bonjardim e transformou-os em residências, onde agora aluga quartos. «Privilegio os estrangeiros e a malta do Erasmus. Quando me meti neste projeto, a cidade estava num boom turístico e eu quis aproveitar a onda.» A área onde trabalha, por outro lado, estava a entrar numa depressão profunda. Segundo a Ordem dos Arquitetos, quarenta por cento dos profissionais da área estão por estes dias sem trabalho. . Alexandra pode ter perdido o atelier , mas arrepiou caminho na criação de novas modalidades de habitação. «Assim que acabei de remodelar os edifícios que tinha comprado, houve várias pessoas que começaram a pedir-me para lhes adaptar as casas. Tenho uma família de classe média-alta da Foz que quis transformar uma parte da sua casa numa zona independente, para alugar a outras pessoas. Remodelei um apartamento para dividir por dois amigos, solteiros na casa dos 40, com um nível de vida acima da média. E alguns proprietários querem agora dividir casas grandes em pequenos apartamentos, ou quartos, para depois os arrendarem.» . Há proprietários de contas apertadas, percebeu a arquiteta portuense, mas também há muita gente aflita à procura de uma residência. «Quando pensei neste projeto, a minha ideia era receber estudantes. Espantou-me a quantidade de pedidos de pessoas adultas, em teoria independentes, para alugar quartos. Estou a falar de mulheres de 50 anos, sozinhas, estabelecidas na vida, que estão a abandonar as casas porque não sabem quanto tempo durarão os seus empregos.» . Bem vistas as coisas, num país onde os centros das principais cidades guardam um mar de casas vazias, as residências disponíveis estão a ficar cada vez mais sobrelotadas. «Face às circunstâncias atuais, são precisos mais sessenta mil fogos no mercado de arrendamento», diz Luís Lima, da APEMIP. «Mas não pode ser o que temos hoje, em que um T1 no centro custa 500 ou 600 euros. Ainda é mais barato comprar do que alugar, e isso não faz sentido nenhum.» O mercado, em suma, resiste a adaptar-se às circunstâncias. E é por isso que a população se aperta. . Nas classes desfavorecidas, os problemas de habitação estão a agudizar-se. Quem atravessa a Avenida da Liberdade, em Lisboa, não pode deixar de reparar no aumento brutal da população sem abrigo - e a Rede Europeia Antipobreza já veio dizer que há um grupo novo de gente que mergulha na rua não por problemas psiquiátricos ou de dependências, mas tão-só porque perdeu o emprego. «Até aos anos noventa, o Estado investiu forte na habitação social para eliminar as barracas», continua Luís Lima. «A partir daí, houve uma desresponsabilização completa e os créditos de alto risco substituíram o trabalho que os governos deviam estar a fazer. Não se pode criar um problema e depois assobiar para o lado.» . Diana faz hoje 9 anos e, de presente, vai receber uma casa nova. A habitação onde vivia com a mãe em São Cosme, Gondomar, estava tão degradada que a autarquia lhes arranjou um apartamento novo - calhou o dia da mudança ser o do aniversário da rapariga. A casa que antes ocupavam escorria água pelas paredes e tinha ninhos de baratas na cozinha. Pagavam uma renda de 200 euros, mas Manuela Sousa, a mãe, está desempregada - o único dinheiro com que faz contas é o da pensão de viuvez e o do abono de família. Vivem as duas mensalmente com 300 euros e a boa vontade da Liga Portuguesa contra a Fome. Há dois anos que a mulher chateava a autarquia e a Segurança Social, precisava de um teto em condições. O fator decisivo para as autoridades atenderem a prece chegou em vésperas do Natal. . A 23 de dezembro bateram-lhe à porta Filipe, o filho de 22 anos, a sua mulher Micaela e Nádia, a filha de 2 anos. O rapaz, que se tinha mudado para o Algarve para trabalhar a montar andaimes, teve de desistir. «O patrão deixou de ter trabalho no Sul e todas as semanas eu tinha de ir para Lisboa. Então ele descontava-me o alojamento, a gasolina e as portagens. Eu ganhava o ordenado mínimo mas, no final, só levava 200 euros para casa.» . O casal e a bebé ocuparam a sala, Diana ficou no hall de entrada e Manuela no quarto, onde também se montava a mesa para o jantar. Todos os dias, mãe, filho e nora compareciam no café do bairro para vasculhar os classificados do jornal. «Estou velha para trabalhar, aos 43 anos», diz Manuela. «Nem em empresas de limpezas me aceitam.» Micaela, a mulher de Filipe, tem curso de barmaid , mas anda à procura de «qualquer coisa, seja o que for». O rapaz conta a mesma história, até agora nada. E, no meio da humidade e do aperto, chegou uma casa, com renda de 4,95 euros mensais. . Há dois quartos, um para Manuela e Diana, outro para Filipe, Micaela e Nádia. O homem da casa vai andar nos próximos dias a bater às portas, quer ver se arranja pelo menos uns biscates. As mulheres hão de revezar-se a tomar conta da criança mais nova e a engomar roupa para as vizinhas. Por enquanto, vão continuar a transformar o jantar de dois em cinco. Mas hoje é o aniversário da Diana, a família tem um teto onde se abrigar e, por um breve momento, por pouco mais do que um sopro, podem alegrar-se com a vida.