Esta semana tem sido pródiga em notícias sobre a corrida de reguladores e tribunais para procurar disciplinar o vale-tudo na desenfreada competição pela atenção. É o capitalismo de vigilância, que compete pela atenção da audiência e a venda de publicidade. .A Meta, em apenas cinco dias, atingiu os 100 milhões de utilizadores na sua nova app Threads, afirmando que lhe bastou o crescimento orgânico via o Instagram: é um record absoluto, superando a marca de dois meses do ChatGPT, segundo noticia a Visão, e a empresa fecha o segundo trimestre com crescimento de 11% nas receitas e de 16% nos lucros, que se cifraram em 7,8 mil milhões de dólares, como anunciado ontem..No business-to-business (B2B), as gigantes usam a sua dominância nos canais de distribuição para colocar os seus concorrentes em situação de desigualdade. Em França, empresas anunciantes online queixaram-se de que através de políticas de privacidade discriminatórias a Apple favorece o seu próprio negócio de publicidade graças ao acesso privilegiado aos dados dos utilizadores dos seus smartphones e serviços digitais, segundo noticiou o Negócios ontem. .Em Bruxelas, a Comissão Europeia prepara-se para condenar a Meta, que pode ir até um máximo de 10,5 mil milhões de euros, por utilizar os dados dos seus clientes empresariais que anunciam no seu "market place" para proveito do seu próprio negócio de venda de publicidade. .Em Portugal, pela mão da Ius Omnibus, a App Store da Apple e a Google Play Store respondem em tribunal pela cobrança abusiva de percentagens exorbitantes sobre as receitas das apps vendidas nestas lojas online..Em relação à App Store da Apple, a Ius acusa a empresa de práticas anti-concorrencial, incluindo contratos com termos e condições que resultam numa comissão de 30% sobre cada venda, aumentado os preços para os consumidores portugueses. Uma das empresas afetadas é a europeia Spotify, que já se queixou à Comissão Europeia por abuso de posição dominante e que luta para concorrer com os serviços streaming da própria Apple Music, sua concorrente e fornecedora. .No caso da Google, a Ius Omnibus continua a defender os consumidores portugueses contra práticas anti-concorrenciais associadas à Google Play Store e às comissões cobradas sobre as vendas. Os consumidores que utilizam equipamentos de comunicações móveis com o sistema operativo Android não têm alternativa efetiva à utilização desse sistema e das aplicações (apps) e conteúdos in-app para Android. .Em mercados com efeitos de escala ou de rede extraordinariamente fortes, bigger gets bigger impondo uma disciplina rigorosa pelos reguladores e uma aplicação atenta das sanções e a reparação dos danos causados. .O estilo velho faroeste na violação da privacidade vai mais longe: promessas de segurança de dados e de privacidade são feitas para atrair os utilizadores para serviços digitais para logo serem intencionalmente violadas by design. .Esta semana em Austrália, um tribunal multou a Meta por uso enganoso de dados de utilizadores. O Facebook Israel e a Onavo, subsidiárias da Meta admitiram que ofereceram, publicitaram e promoveram a aplicação Onavo Protect, na App Store e na Play Store, como fornecendo uma VPN (Virtual Private Network) onde os utilizadores poderiam navegar com segurança e privacidade. No entanto, a Onavo Protect recolheu os dados sobre a forma como os utilizadores usavam os telemóveis e forneceu-os à Meta, que usou esses dados para uma série de fins comerciais, numa ação semelhante à levada a cabo pela empresa Flo Health com a Facebook também..Com a Flo Health a Meta devassou dados íntimos das mulheres. .A dimensão e a gravidade social das práticas ilegais da Flo Health sancionadas pela norte-americana Federal Trade Commission tornaram prioritário para a Ius Omnibus processar esta empresa nos tribunais reclamando uma indemnização para as utilizadoras em Portugal..A Flo Health é uma aplicação móvel baseada em Inteligência Artificial, funcionando como um calendário da ovulação que faz a monitorização da menstruação, serve como guia para a gravidez e para o acompanhamento de aspetos da saúde ginecológica e psíquica das mulheres. .Mais de 100 milhões de mulheres em todo o mundo, das quais, mais de 10 milhões nos EUA, e de 19 milhões na EU, instalaram e utilizaram esta app desde 2016 com devassa da sua privacidade. A Flo Health era vendida na Apple App Store e na Google Play Store. Na Apple App Store, foi a app mais descarregada do ano de 2019. .Tal como a Onavo Protect que vendia serviços de VPN, na sua "política de privacidade" a Flo Health garantia que não cedia nenhuns dados de saúde a terceiros, e que os que cedia se destinavam apenas a fazer funcionar o serviço, mas nunca os dados não anonimizados de íntimos e de saúde..Mas mentiu frontal e continuamente durante anos a fio. Porque na verdade contratou com dezenas de empresas o acesso aos dados das suas utilizadoras, apesar de a sua política de privacidade declarar expressa e especificamente exatamente o contrário..Incluem-se entre os compradores da Flo Health grandes empresas que fazem marketing digital, de data analytics e que vendem publicidade endereçada, tais como o departamento de marketing do Facebook - Facebook Analytical Tool; o serviço de marketing da Google; ou duas outras grandes empresas de marketing especializadas em apps móveis: Flurry e Apps Flyer. .Entre os dados que a Flo Health distribuiu por dezenas de empresas terceiras, incluem-.se os dados de saúde íntimos juntamente com a identificação pessoal das utilizadoras - nome, email, morada, data de nascimento, e identificador do dispositivo móvel. .As utilizadoras registavam, por apelo da própria app, os dias de menstruação, assim calculando a ovulação e rastreando os dias de fertilidade, recebendo lembretes das fases do ciclo menstrual. Adicionalmente, a app apelava a que as mulheres fizessem o registo dos seus moods (disposições) e sintomas do chamado síndrome pré-menstrual, sintomas de gravidez, o peso ou a temperatura. .Tecnicamente, a vigilância processa-se pela conjugação de três mecanismos. Pela instalação dos chamados Software Development Kits (SDK). Este software recolhe os dados e associa-os aos chamados identificadores individuais de publicidade ou de aparelho móvel - Unique Advertising Identifier ou Unique Device Identifier. Os SDK são das empresas terceiras a quem os dados são vendidos. A Flo Health integrava na sua app os SDK"s daquelas dezenas de empresas. O segundo mecanismo são os próprios identificadores: UAI ou UDI. O terceiro mecanismo são os chamados Standard App Events, que dão títulos a ações de utilizadores numa aplicação móvel, e que recebem uma relevância para efeitos de endereçamento de publicidade. .Na app Flo Health, um evento acontece quando, por exemplo, a utilizadora insere a semana em que engravidou, esse ato é marcado (recebe um label ou um tag) como «semana de gravidez escolhida». .Noutro exemplo, se a utilizadora pediu para receber lembretes de menstruação na área dedicada a "quero engravidar", esse evento será registado como «aceita notificações menstruação» e catalogado com um "P", de pregnancy. .Os anunciantes clientes da Flo Health vão saber destes eventos-tipo e, graças aos identificadores, direcionar publicidade individualizada..Portanto, com os SDK das empresas terceiras, os identificadores únicos e os Standard App Events, a Flo desenvolveu ilegalmente durante anos um negócio de milhões. .É importante estarmos todos alerta para o que pode ser feito com os nossos dados: quando damos dados sobre a nossa saúde, é importante controlar o seu destino, a sua utilização por IA. .A Ius Omnibus alerta o público para a necessidade de avaliar as condições contratuais de proteção de dados pessoais que subscrevem e de monitorizar a publicidade que recebem e, se tiverem suspeitas, fazer denúncias à Comissão Nacional de Proteção de Dados, que tem competência para tratar destes casos. .Existe um acordo entre os EUA e a UE com base no qual, a Europa aceita que dados pessoais dos europeus sejam transferidos para os EUA desde que seja garantido o mesmo nível de proteção consagrado na lei europeia, ou seja, no Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), conhecido como o EU-USA Privacy Shield, que a própria FTC acusou a Flo Health de violar..Nos EUA, a Flo acabou por confessar e assumir os compromissos de cessar as práticas ilegais e de indemnizar as utilizadoras. Na Europa, nada ainda lhe sucedeu. A Ius Omnibus é a única entidade na Europa, que saibamos, que está a lutar em tribunal pela reparação das lesadas. .É muito importante que a divulgação inicial das ações populares seja melhorada. Publicar dois anúncios em jornais não basta e esta solução devia ser repensada pelo legislador, como critica, e bem, a Juíz Joana Araújo do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, de Santarém, em entrevista à Agência Lusa. A juíz, que tem perante si várias ações populares para indemnização de consumidores, chamou a atenção para o modo de divulgação das ações populares atualmente previsto na lei, de publicação de anúncios em dois jornais, o que leva a que muitos consumidores "não tomem conhecimento efetivo das Ações Populares e dos direitos que através das mesmas se pretendem valer". A magistrada salientou a importância de divulgar estas ações para garantir os consumidores venham efetivamente a ser compensados..A Ius adere em absoluto a esta posição. Ao longo das últimas duas semanas, a Ius foi ouvida pela Comissão de Economia da Assembleia da República no âmbito da .transposição da Diretiva das Ações Representativas. Na sua posição, defende que a nova lei das ações coletivas preveja expressamente que uma sentença condenatória possa ordenar uma panóplia de medidas que favorecem a divulgação e indemnização dos consumidores lesados. .São os casos do pagamento direto pela Ré aos consumidores representados que ainda sejam seus clientes e sejam identificáveis. Ou a informação direta pela Ré aos consumidores representados através dos canais com que aquela normalmente comunica com os seus clientes, incluindo um aviso em fatura, através de correio postal, correio eletrónico e ou SMS, repetindo essa informação em mais do que um ciclo mensal de faturação, sendo esse o caso. A Ius defende também melhoria da informação nos órgãos de comunicação social, através de comunicado de imprensa a ser divulgado pelo Conselho Superior da Magistratura, de mais anúncios em imprensa escrita, rádio, televisão, páginas de internet e redes sociais. .A Ius Omnibus avança ainda com a proposta de utilização de uma ou mais plataformas eletrónicas de divulgação e distribuição de indemnizações globais, de natureza privada ou pública. A Associação irá brevemente colocar à disposição do público uma plataforma eletrónica por si desenvolvida. .Mas, no seu entender, a solução ideal passa pela divulgação de sentenças de indemnização de consumidores não só num website gerido pela Direção-Geral de Consumidores, mas também através de um sistema de comunicações diretas à semelhança do programa IVAucher, para alcançar o elevado nível de divulgação que teve este programa..Na Comissão de Economia da Assembleia da República a Ius foi interpelada por deputados do PS, PSD e Chega, que participaram na audiência, tendo sido também recebida pelos grupos parlamentares do PS e do PSD. Foi com bastante agrado que a Ius viu todos os membros de parlamento enaltecerem a importância das ações populares para a defesa dos consumidores e dos direitos das pessoas lesadas, sendo consensual a necessidade de promover a mais ampla divulgação dos casos e a transparência da sua condução junto do público. É um bom sinal que o debate esteja a ser suscitado nos tribunais e na Assembleia da República. As soluções já estão identificadas. Só falta adotá-las e dar-lhes notoriedade para criar uma nova cultura de cumprimento da legalidade e de reparação dos lesados quando assim não acontece..A Ius Omnibus, do seu lado, continuará a trabalhar na defesa dos consumidores..Secretária-Geral da Ius Omnibus