Candelária,  Carandiru, Guarujá

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Muito pontual, gente boa, caladão", disse Douglas Brito, dono de uma barraca de praia, no Guarujá, estado de São Paulo, sobre o empregado Filipe Nascimento, que nos tempos livres divulgava na rede social TikTok as suas peças artesanais.

Na noite de 28 de julho, Filipe pegou na bicicleta e foi ao mercado comprar o jantar dele, da namorada e das duas enteadas, de 7 e 9 anos. Numa região sob influência do Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa da América Latina, foi morto no caminho por outro gangue: a polícia militar.

No dia seguinte à execução, o governador de São Paulo declarou-se, em conferência de imprensa, "extremamente satisfeito" com a operação que, além de Filipe, matou mais 15 compatriotas dele.

A operação que satisfez Tarcísio de Freitas, um delfim de Bolsonaro que, por conseguir falar com seriedade de vez em quando parece menos perigoso do que o original, surgiu como reação à execução do soldado Patrick Reis pelo PCC.

Entretanto, o assassino de Reis, suposto novo líder do PCC no Guarujá, só foi preso dois dias depois, mais ou menos à mesma hora em que Filipe, um "dano colateral", era enterrado.

Na mesma semana, mais uma operação policial matou 10 no Rio de Janeiro e outra, na Bahia, executou 19. Entre os mortos, além dos criminosos que mereciam ser julgados, novos "danos colaterais" pretos e pobres, como Thiaguinho, 13 anos, camisa 10 da sua equipa de futebol na Cidade de Deus, cuja vida foi interrompida, segundo palavras da mãe, pela "necropolícia".

Os polícias são obrigados, por lei, a usar uma câmara no uniforme, mas as imagens, estranhamente, desaparecem sempre que a ação é classificada de desastrosa.

O cientista Steven Pinker, citado pelo colunista Hélio Schwarts- man, da Folha de S. Paulo, lembra que quando, no século XVI, o Estado tomou para si o uso legítimo da violência, além de as taxas de homicídio caírem, a medida abriu caminho à consolidação do devido processo legal e da proporção e individualização das penas.

Nessa perspetiva, o Brasil de 2023 ainda é um país pré-século XVI: a polícia age como um PCC de uniforme, que se vinga e mata sem se importar com essa mariquice do processo legal e dos "danos colaterais".

Entretanto, caso você, leitor, seja brasileiro e se indigne com a sorte dos chacinados pelo Estado, saiba que está em solitária minoria - 83% dos ouvidos em sondagem Datafolha acham que "há muita mordomia para bandido".

Entre os eleitores de Bolsonaro, sempre mais ávidos de sangue do que a concorrência, 93% aderem à tese, e parte até partilha imagens dos cadáveres em grupos de WhatsApp. Mas entre os votantes de Lula, o número chega a impressionantes 73% (a operação que mais matou nesta semana foi na Bahia, cuja polícia obedece a governos do PT há décadas).

Eis o paradoxo: com medo dos fora da lei, os brasileiros autorizam os agentes da lei a agir fora dela.

Trinta anos depois da Chacina de Candelária, quando oito brasileiros, entre os 11 e os 19 anos, foram executados em frente à escadaria da igreja que lhes servia de abrigo por tiros disparados por sete homens, entre os quais três polícias, de dois veículos, o Brasil não evolui.

E não aprende: um ano antes de Candelária, 111 presos da cadeia de Carandiru foram executados pela polícia. O resultado do massacre foi a fundação nos dias seguintes, em retaliação, do tão temido e cada vez mais raivoso PCC.


Jornalista, correspondente em São Paulo

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