Cães com muita pinta

Lançado nas salas de cinema há cinquenta anos, parece nunca ser tarde de mais para recordar um clássico da Disney que atravessa várias gerações.
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Não são dez nem quinze: são cento e um dálmatas e, passados cinquenta anos do lançamento original do filme de animação nas salas de cinema norte-americanas, em 1961, confirma-se que nunca nos esqueceremos do sucesso causado por esse número mágico da Disney.

Depois de termos visto um total de 6 469 952 pintas ao longo do filme, que não seriam possíveis se não fossem os 1 218 750 lápis utilizados, o 17.º clássico destes estúdios de animação foi de tal modo bem-sucedido em termos comerciais, alimentando a imaginação das crianças e dos amantes de cães (sobretudo de dálmatas), que ganhou outras versões posteriores em cinema, uma série de televisão, um musical e dois videojogos.

Na verdade, não foi a Disney a primeira a lançar a ideia narrativa, mas uma romancista inglesa chamada Dodie Smith, que escreveu o livro para crianças The Hundred and One Dalmatians, em 1956. A história nasceu quando uma amiga da escritora disse, de forma descontraída e não por maldade, que dálmatas como o que Smith tinha (um cão que, curiosamente, se chamava Pongo, tal como um dos heróis do livro e do filme) dariam um belo casaco de peles. Dodie Smith rapidamente construiu a personagem de Cruella De Vil e escreveu uma aventura mirabolante que acompanhava o roubo de vários dálmatas.

Entretanto, Walt Disney acabava de lançar a sua 16.ª longa-metragem de animação, A Bela Adormecida, em 1959. Apresentou-se então como a produção mais dispendiosa da história do estúdio (mais de quatro milhões de euros), tendo um retorno financeiro fraquíssimo (pouco mais de cinco milhões de euros). O falhanço comercial levou a que a Disney decidisse cortar em gastos, comprometendo a qualidade que caracterizava a produção das suas animações.

Assim, 101 Dálmatas foi visto como uma revolução, por diferentes motivos, daquilo que era habitual no estúdio. O filme foi o primeiro a utilizar o novo processo de xerografia (introduzido pelo velho amigo de Walt Disney e génio da técnica Ub Iwerks), que tornou sequências como as que juntavam vários dálmatas mais baratas. O processo baseava-se na cópia e colagem directa e facilitada para acetatos dos desenhos dos animadores, prontos a pintar, em vez de meticulosamente traçados com tinta, vezes sem conta, para preencher o ecrã. Para além desta inovação técnica, o filme usa uma perspectiva multiplano (método que confere a sensação de profundidade a partir de diferentes pontos, utilizado na sequência de abertura, à semelhança da de Pinóquio), filmagens reais e de arquivo sobrepostas à animação (como a neve ou a curta-metragem a preto e branco Springtime, que estreou em 1929) e participações de personagens que surgiram em filmes anteriores (como os cães de A Dama e o Vagabundo).

Os animadores preferiam as linhas mais imperfeitas do processo de xerografia porque, pela primeira vez, podiam ver o seu trabalho no ecrã. O estilo livre foi adoptado por Ken Anderson, designer de produção, director artístico e praticamente o responsável pelo aspecto global do filme, que deu um ar mais contemporâneo à arte paralela aos desenhos de animação.

Foi, provavelmente, em parte por essa razão que Walt Disney não gostou do resultado final do filme. Apaixonado pelo estilo romântico de A Bela Adormecida, Peter Pan ou Cinderela, o produtor lamentou o facto de estar a perder o lado mais elegante, sumptuoso e de bela tapeçaria que os seus filmes tinham.

De facto, 101 Dálmatas abandona, por completo, o ar classicista das primeiras obras do estúdio. Por outro lado, introduz uma contemporaneidade única e inesperada nas histórias para crianças. Imbuída de uma sensibilidade moderna, a longa-metragem é preenchida com grandes manchas de cor e um traço impreciso, da responsabilidade dos artistas Milt Kahl, Frank Thomas, Ollie Johnston, Les Clark, Eric Larson e John Lounsbery.

A insatisfação de Walt Disney pelo filme também deve ter sido provocada pelo facto de ser a sua primeira obra que não é um musical, o que não deixa de ser algo irónico porque uma das personagens, Roger (dono de Pongo), é um compositor que canta para a mulher o tema da Cruella De Vil. Pelo contrário, no livro homónimo, embora tenha um vizinho que é compositor e toca piano, Roger é um génio financeiro que acabou de livrar o governo inglês de uma grande dívida e que, como recompensa, deixa de lhe cobrar impostos e lhe oferece uma pequena casa perto de Regent"s Park. Apesar disto, somos confrontados no filme com um ritmo de blues e uma banda sonora contemporânea inspirada no jazz, precisamente porque o filme tem a pretensão de ser actual.

Pela primeira vez vimos num filme da Disney mais do que fantasia: mistério, suspense e a preocupação sobre se as personagens sobreviveriam ou não (tal como aconteceu na vida de Dodie Smith, a adaptação para cinema mostra-nos que o 13.º dos 15 cachorros que o casal de dálmatas Pongo e Perdita tem nasceu quase sem vida, sendo reanimado pelo dono, que o envolveu numa toalha e o massajou).

Ao mesmo tempo, vemos mais elementos inéditos: um casal que sente atracção física um pelo outro e que namorisca e, por outro lado, uma animação que toca (ainda que de forma divertida) em temas controversos do dia-a-dia, como a execução de casacos de pele, e em programas de televisão.

Como exemplo encontramos, muito à semelhança do que Dodie Smith fez com o seu livro, os ladrões Horácio e Gaspar viciados em programas de TV como Que Crime Pratiquei? (título que parodia um concurso que passou entre 1950 e 1967 chamado What's my Line?), e o gosto dos cachorrinhos pela série Trovão, ambientada no Oeste, em homenagem aos westerns e programas com cães heróis populares em televisão nos anos cinquenta.

Com 101 Dálmatas, a popularidade pelos dálmatas, pelo livro (que ganhou sequela em 1967 e que nunca viu versão para o grande ecrã) e pelo filme cresceram de forma inimaginável, de tal modo que a longa-metragem foi relançada em sala em 1969, 1979, 1985 e 1991, atingindo sempre grandes êxitos de bilheteira.

Em 1996, a Walt Disney Pictures estreou no cinema o remake em imagem real de 101 Dálmatas, longa-metragem em que os cães não falavam e eram reais. O filme ficou na memória dos espectadores pela marcante participação de Glenn Close como Cruella De Vil, a maléfica mulher que ordena roubar os dálmatas para fazer um vestido de pele.

No livro, a autora descreve Cruella com «pele escura, olhos negros com um toque vermelho e nariz arrebitado, usava risco o meio no cabelo e metade era preta e a outra branca», algo que se aproxima à popular figura que surge no filme.

A vilã «mais traiçoeira do que uma cascavel» foi desenhada por Marc Davis, inspirado no temperamento incendiário de uma sua amiga estilista, em praticamente todas as cenas em que aparecia em 101 Dálmatas, o que é invulgar dado tratar-se de um processo colaborativo.

Caracterizada com formas burlescas e com uma longa boquilha da cigarrilha que o próprio Davis utilizava, a personagem de Cruella De Vil foi também baseada nas filmagens de referências feitas à actriz Mary Wickes (cujo último trabalho foi ter dado a voz a uma das gárgulas em O Corcunda de Notre Dame).

Natália Luíza dá a voz, na versão dobrada para português, à famosa vilã, substituindo a voz original da experiente actriz Betty Lou Gerson, cuja interpretação estridente (que aos críticos da altura fez lembrar a excêntrica actriz Tallulah Bankhead) era o inverso da que realizara como a simpática narradora de Cinderela.

Rosto das duas versões de imagem real (101 Dálmatas, em 1996, e 102 Dálmatas, em 2000), Glenn Close, que já foi cinco vezes nomeada para um Óscar, declarou ao DN, em 2001, que via «a Cruella como uma herança natural dos contos de fadas», apesar de considerar a Bruxa Má de Branca de Neve e os Sete Anões mais «arrepiante» do que Cruella. Para além disso, explica que os vestidos que definem a personagem «determinam uma espécie de bitola e patamar mínimo para a performance», em que «não se pode descer desse nível».

Depois de terem estreado, com relativo sucesso comercial, os dois filmes de «carne e osso», o público de 101 Dálmatas assistia ao lançamento, em 1997, da série de televisão animada Os 101 Dálmatas, hoje em exibição no canal português Disney Cinemagic. O programa, que perdurou até 1999 ao longo de duas temporadas e 65 episódios, viu um dos seus capítulos («Alive"n"Chicken») banido mais tarde do pequeno ecrã, por causa de uma cena que se aproximava, segundo a Disney, dos atentados terroristas ocorridos no dia 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque.

Em 2003, a Disney decidiu investir ainda mais na série cinematográfica com a sequela da animação original 101 Dálmatas 2: A Aventura de Patch em Londres, que saiu directamente para o mercado VHS e DVD.

Após dois videojogos (um para PlayStation e outro para PC), em 2008, Selena Gomez, uma das populares estrelas da Disney, interpretou o tema Cruella De Vil, cujo teledisco foi incluído na versão em DVD do filme de animação original.

Há dois anos, Jerry Zaks dirigiu o musical norte-americano bem recebido pelo público e crítica The 101 Dalmatians Musical, que contou com a música de Dennis DeYoung, que a co-escreveu com B.T. McNicholl e com a participação de Rachel York como Cruella De Vil.

Parece, por isso, que passadas cinco décadas os filmes dos cachorrinhos com pintas pretas continuam bem vivos na mente do público, preservando o legado de um dos maiores clássicos da Disney para a posterioridade.

SEQUELAS

101 Dálmatas (1996): os dálmatas ganham carne e osso

O primeiro remake de um filme de animação da Disney em imagem real foi precisamente 101 Dálmatas, que estreou no dia 27 de Novembro de 1996 nos EUA. Realizado por Stephen Herek (que mais tarde dirigiu a longa-metragem Uma Estrela de Rock, com George Clooney) e produzido por John Hughes (responsável por sucessos de cinema familiar como os três capítulos de Sozinho em Casa), 101 Dálmatas introduziu três novidades: os cães eram reais, não falavam e o dono de Pongo, Roger (interpretado pelo actor Jeff Daniels), era um designer de videojogos que encontra inspiração com a própria história do filme. Para dar vida à malévola Cruella De Vil, a Disney contratou a actriz Glenn Close, que seria reconhecida pelo seu grande desempenho e surgiria novamente na sequela 102 Dálmatas. Por sua vez, Hugh Laurie (melhor conhecido pelo seu papel como Dr. House), representa um dos ladrões dos dálmatas. Apesar da mediana recepção por parte da crítica, o filme teve um bom retorno financeiro, quer em termos de bilheteira quer de receita doméstica.

102 Dálmatas (2000): a cadela que não tinha pintas

A sequela do filme em imagem real regressou com dois actores do elenco antigo: Glenn Glose (como Cruella De Vil) e Tim McInnerny, e apresentou-se como uma continuidade original do filme em que se baseia. Essencialmente, acompanha Cruella depois de sair de três anos de prisão onde foi submetida a um tratamento psicológico que lhe trataria a obsessão pelos dálmatas. Contudo, quando Cruella (que assume o nome de Ella) volta ao seu estado maléfico mal ouve o Big Ben, começa a engendrar, ao lado da personagem vestida por Gerard Depardieu, um esquema para fazer um casaco de pele a partir de vários dálmatas. O filme, rodado em parte em Londres e Paris, e que utiliza efeitos especiais para recriar digitalmente alguns dos dálmatas, introduz também novas personagens como Palpitos, um papagaio que julga ser um cão ou Branquita, uma jovem dálmata que espera o dia em que lhe apareçam as suas primeiras pintas. Em termos comerciais, o filme não conseguiu o êxito do precedente 101 Dálmatas mas, ainda assim, foi lançado em VHS e DVD em redor do mundo.

101 Dálmatas 2: A Aventura de Patch em Londres (2003): uma sequela animada

Lançado directamente para o mercado de vídeo e de DVD no dia 3 de Janeiro de 2003 (e relançado em 2008 nos EUA), este filme é uma animação que se apresenta como a sequela do original 101 Dálmatas. Contando com as vozes de Martin Short, Jason Alexander, Barry Bostwick e Susanne Blakeslee, a história acompanha a aventura do filho de Pongo e Perdita, Patch, que se segue isolado entre os cem companheiros. Quando Raio, companheiro da estrela televisiva canina Trovão («o extraordinário Cão Maravilha»), divulga que a produção está à procura de um novo protagonista, Patch acompanha o seu herói no mundo real, fora do pequeno ecrã. Eventualmente, a jornada de ambos complica-se quando, uma vez mais, Cruella De Vil persegue os dálmatas em busca do seu casaco de pele ideal. O filme, que teve uma recepção mediana por parte da crítica e público, foi escrito e realizado pela dupla Jim Kammerud (que ficaria conhecido por ter conseguido concretizar várias sequelas de longas-metragens da Disney, como Pocahontas 2, A Pequena Sereia 2, Tarzan 2 e Papuça e Dentuça 2) e Brian Smith.

Um cão com história

Com um ar tão altivo, harmonioso e elegante quanto curioso e alegre, o dálmata foi sempre alvo de apreciação pelo ser humano, sobretudo pelo seu particular pêlo curto, liso e branco com manchas pretas e redondas. Não se sabe rigorosamente de onde provém esta raça canina, ainda que haja quem defenda que o dálmata é originário da Croácia (da região da Dalmácia) ou do Egipto Antigo, onde foram encontrados desenhados cães com pintas que, em viagens, provavelmente se cruzaram com outras raças. Sociável, activo e brincalhão, os dálmatas foram sempre companhias inteligentes, pelo que já foram treinados para servir como cães de caça, ainda que não sejam naturalmente agressivos. Tal como Pongo e os seus 15 filhos, os dálmatas são fiéis ao seu dono e também gostam de passear frequentemente, nunca se cansando de ir à rua. O livro original e o filme Os 101 Dálmatas provocaram uma popularidade dos dálmatas sem precedentes, motivando a sua criação.

Inspiração canina

Na história do cinema da Disney, os cães foram presença recorrente nas aventuras criadas pelo estúdio, antes e depois do lançamento de Os 101 Dálmatas. A primeira longa-metragem lançada tendo os cães como protagonistas foi A Dama e o Vagabundo, estreada pela primeira vez no dia 22 de Junho de 1955, de que ficou conhecida a imagem romântica de um rafeiro e de uma cocker spaniel a comerem esparguete e a encostarem acidentalmente os focinhos. Para além dos dois, surgem no filme raças como o schnauzer alemão, um terrier escocês, um cão-de-santo-humberto ou um buldogue. Mais tarde, em 1981, o filme dramático de animação Papuça e Dentuça, sobre a amizade improvável entre uma raposa e um cão de raça coonhound estreia nos EUA. Sete anos depois, o estúdio de animação lança Oliver e Seus Companheiros que, apesar de ser protagonizado por um gatinho, nos apresenta um gangue de cães composto por um chihuahua, um grand danois, uma saluki e um buldogue. Em 1995, a Disney decide lançar Pateta - O Filme, que se debruça sobre a relação disfuncional entre o famoso Pateta e o seu filho adolescente (ambos cães). Já nos últimos anos, pudemos ver, em 2008, Bolt, o cão estrela de uma série popular de televisão, e, em 2009, o filme vencedor do Óscar para melhor filme de animação Up - Altamente!, em que surge Dug, um golden retriever, e um dobermann que, por via de um avanço tecnológico, conseguem falar. De resto, podem destacar-se na história da Disney, entre outros, os cães Bruno (Cinderela), Max (A Pequena Sereia), Toby (Rato Basílio) e Napoleão (Os Aristogatos'.

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