Cada cabeça, sua sentença

Os portugueses são mestres em recitar todo um saber de experiências feito. E os ditos populares sobre alimentação são disso um excelente exemplo. Carregados de bom senso, intenções moralizadoras e inesperado conhecimento científico.
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Aforismo - etimologicamente definição sumária - é uma designação comum a sentenças de origem erudita e de raiz popular. Estas, também designadas por adágios, anexins, ditados, provérbios e rifões, resultam da verbalização em frases curtas da experiência de viver e são rimadas ou ritmadas com o intuito de facilitar a memorização. Habitualmente exprimem regras de comportamento, princípios morais, verdades resultantes de uma visão peculiar do mundo. Muitas delas sobrevivem há muitos séculos, outras vão sendo talhadas à medida das necessidades da época ou sabiamente adaptados a ela.

Assumem forma monológica ou dialógica, têm conteúdos variados, não raramente têm interpretação ambígua, versam muitas vezes o estilo de vida e, como seria de esperar dada a natureza deste tema falam-nos de refeições, alimentos e condutas alimentares.

Comer e beber são fonte de vida e por isso a sabedoria popular nos diz, quase desde a fundação da nacionalidade, que «primeiro são dentes que parentes». Estabelecida essa prioridade, sabendo que «a fome é má conselheira», pode começar a preparar-se a refeição calmamente porque «apressado come cru», mas sempre com a pedra no sapato porque «na hora de comer o diabo traz mais um». Como «bolo torto não perde o gosto», a aparência é de somenos importância e não merece preocupações: é bem sabido de toda a gente que «burro com fome cardos come» e que «da garganta para baixo tanto dá ser galinha como sardinha».

Porém, se acaso o diabo se lembrar de trazer o tal metediço - «borrego manso mama a sua teta e a teta alheia» - é bom não esquecer durante o repasto que «quem parte e reparte, se não fica com a maior parte ou é burro ou não tem arte» e que depois de «refeição feita, companhia desfeita».

Quando a porta se fecha e se fica a falar com a cozinha desarrumada vale a pena lembrar que «guardado está o bocado para quem o há-de comer», na «casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão» e que ainda não foi preciso «apertar o cinto». São pensamentos que põem o coração ao alto.

Guardar a saúde

Se atentarmos nos exemplos que utilizei como suporte para a divagação sobre o preparo de um almoço hipotético logo verificaremos que, apesar de a maioria se referir genericamente a comportamentos e necessidades alimentares, são de interpretação dúbia e foram criados de raiz sobretudo para enfatizar procedimentos ou sucessos reveladores de egoísmo, oportunismo, fortuna, inquietação, esperteza, entre outros. Porém, não é raro que encontremos exemplos de sentenças concebidas para guarda da saúde com fundamento no poder de observação e na experiência do povo.

A expressão «apertar o cinto», agora tão usada, mostra bem essa atenção, esse saber de experiência feito. De facto, quando surgem dificuldades económicas e se restringe a alimentação, o organismo utiliza prioritariamente as reservas de gordura existentes ao redor das vísceras porque são de mobilização mais fácil. Essa mobilização conduzirá, como é óbvio, à redução do perímetro da cintura e será o primeiro sinal visível do emagrecimento.

A recomendação de evitar refeições tardias abundantes - «de fartas ceias estão as sepulturas cheias» - de natureza estritamente sanitária, está ligada com muita probabilidade à observação de sintomas de má digestão mais frequentes durante a noite e, eventualmente, em relação com a eclosão da pancreatite aguda muitas vezes precedida de excesso alimentar.

Os aforismos eruditos, alguns congeminados por sábios antigos e dos quais «comer para viver e não viver para comer» é exemplo, depois de ouvidos repetidamente pelo povo e depurados por sucessivas repetições deram por vezes origem a formas mais sucintas e não menos abrangentes. «Guarda de comer, não guardes que fazer» tem implícita a sensatez da recomendação culta, mas acrescenta-lhe a importância da actividade física.

Sobre a escolha alimentar não há muito a dizer. A prática de muitos anos mostrou, como já vimos, que o bolo torto não deixa de saber a bolo e que do esófago para baixo sardinha e galinha, que só a boca distingue, cumprem funções plásticas idênticas. Por isso o saber popular, admitindo que para «quem tem a barriga cheia toda a fruta tem bicho», resumiu em duas penadas o modo de fazer a escolha acertada: «o que não mata engorda» e que «cada um coma do que gosta».

Importante é o equilíbrio, «pão que sobre, carne que baste e vinho que falte», porque o nosso organismo, esse gestor inultrapassável, se não o sobrecarregarmos com trabalho desnecessário e não pusermos constantemente à prova a sua imensa capacidade de desintoxicação, pode permitir-nos uma vida longa e tranquila.

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