Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil votava um tema caro à esquerda: a descriminalização do porte de drogas leves, para desafogar as sobrelotadas prisões do país, repletas de "criminosos" que fumam um "charro" de vez em quando. Tudo corria conforme o roteiro dos progressistas, com cinco votos a zero, até um dos juízes, conservador, reduzir para 5-1. Nada de anormal, afinal há dois juízes na corte nomeados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Mas não: o divergente foi o juiz escolhido por Lula da Silva há um mês para o STF. O porte de drogas leves será aprovado mas o voto de Cristiano Zanin abalou, de vez, a relação entre o presidente da República e a esquerda à sua esquerda..Na quarta-feira, 30, uma resolução do próprio PT, de Lula, deixou um recado a Zanin nas entrelinhas: classificou como "avanços civilizatórios" as decisões recentes do STF a favor da população LGBTQIA+ e dos povos indígenas, além da citada questão do porte de drogas, sendo que, em todas elas, a aposta de Lula votou contra. O presidente da República está, portanto, pressionado, à esquerda, a escolher em outubro, quando a atual juíza Rosa Weber se aposenta, um indiscutível liberal para o STF - ou melhor, uma indiscutível liberal..Os ruídos na relação entre o Planalto e os setores mais progressistas do PT e os partidos, como o PSOL, semelhante ao português Bloco de Esquerda, o Rede Sustentabilidade, de pendor ambientalista, e outros não se esgotam, entretanto, em Zanin e no STF..O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), grupo de inspiração marxista com cerca de 1,5 milhões de membros que defende uma reforma agrária, invadiu a 31 de julho uma propriedade estatal em Petrolina, Pernambuco, argumentando que Lula não cumpriu um acordo assinado com o movimento em abril. Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário, ainda conseguiu a desocupação no mesmo dia mas os ruídos na relação cresceram com o governo a chamar o MST de "ansioso" e o movimento a acusar o governo de "falta de empenho". João Pedro Stédile, líder do MST, é um dos mais leais aliados de Lula..Por outro lado, um instituto público ambiental, com o apoio do Ministério do Meio Ambiente, liderado por Marina Silva, vetou um projeto de prospecção de petróleo na costa do Amapá por "inconsistências técnicas". Mas o Ministério de Minas e Energia pediu uma reconsideração do veto e Lula já disse que "o Amapá pode continuar sonhando", dando indicação de que, na dúvida, opta pelo petróleo..Destaquedestaque"O governo Lula de hoje é mais conservador do que o de há 20 anos porque a correlação de forças no Congresso, e na sociedade, mudou", diz André Kaysel..Mais: o presidente fará, a qualquer momento, uma remodelação governamental que prevê acolher como novos ministros dois quadros, ambos homens, de partidos, o Republicanos e o PP, da base de Bolsonaro. O objetivo da remodelação é aumentar a força do governo no Congresso; a consequência é uma inevitável guinada à direita no executivo..Está Lula ameaçado de ver ruir alianças à esquerda? André Kaysel, professor de Ciência Política da Universidade de Campinas, acha que não. "Há 20 anos, por causa da reforma da previdência, parte da esquerda rompeu, sim, com o governo Lula e assim nasceu o PSOL mas hoje o cenário é outro. Acredito em gritaria nas redes sociais mas não em ruptura, afinal, o Lula acaba de fechar apoio a Guilherme Boulos, do PSOL, na corrida à prefeitura de São Paulo. O PSOL vai abrir mão disso? Improvável".."O governo Lula de hoje é mais conservador do que o de há 20 anos porque a correlação de forças no Congresso, e na sociedade, mudou: a extrema-direita era, então, um fenómeno marginal, agora é um fenómeno de massas; o PT, naquela altura, tinha 92 deputados, agora a federação composta por PT, PC do B e PV soma 80, o Lula tem de se equilibrar", continua..Mayra Goulart, professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que esta é "a natureza do presidencialismo no Brasil, o presidente, chefe do executivo, raramente tem maioria no legislativo, sempre muito fragmentado". "Entretanto, a maioria dos partidos, por culpa da curta tradição de democracia, não são ideológicos, eles são, em vez disso, "partidos autocarro", que pegam tudo, e são esses partidos que são atraídos pelas reformas ministeriais e concessão de benesses - isso inclui até os partidos que estiveram na órbita de Bolsonaro, como o Republicanos e o PP"..Em suma, segundo Mayra, "para aprovar no legislativo os seus projetos, o governo precisa piscar o olho a esses partidos, de centro-direita e direita, porque os de esquerda, por já terem uma convergência ideológica, não precisam de serem estimulados a aderir"..Destaquedestaque"A redução da polarização tem aumentado a popularidade do governo Lula porque a melhoria económica é lida em segmentos como a classe média ou os evangélicos", considera Mayra Goulart..Por outro lado, as causas da esquerda não se traduzem em votos. "MST, diversidade sexual, liberalização de drogas e outros temas aumentam a polarização na sociedade, são temas que, além da esquerda progressista, não encontram adesão no resto da população, eles desagregam mais do que agregam, eles reduzem os apoios já obtidos pelo governo".."E a redução da polarização, entretanto, tem aumentado a popularidade do governo Lula porque a melhoria económica é lida em segmentos como a classe média ou os evangélicos, antes identificados com o bolsonarismo, como fruto da diminuição dessa polarização, daí o governo priorizar a agenda económica face à agenda da reforma agrária, da diversidade e da inclusão que não têm retorno eleitoral"..No entanto, "há pressão, sim, da esquerda", admite Kaysel, "afinal, no caso de Zanin, ele foi uma escolha pessoal do Lula e vem-se revelando mais conservador do que a encomenda, o que aumenta a pressão na próxima nomeação para o STF".."O tema do petróleo é ainda mais sensível, afinal, o Rede Sustentabilidade nasce, em 2009, depois de Marina romper com o governo", argumenta. "Sob pressão dos estados, pobres, da região, Lula diz que é favorável à exploração, mas, por outro lado, ele tem a política ambiental como central para a sua projeção internacional, logo, ele tentará, como sempre, ser conciliatório mas, às vezes, pode não haver caminho do meio"..O DN pediu ao PT um comentário sobre o assunto mas nenhum dirigente respondeu. O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse entretanto à emissora Globonews que "o Governo Lula não é de esquerda, expressa maioria democrática"..dnot@dn.pt