BOTAR FOGO SEM SABER PORQUÊ

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Incendiários em Portugal. Quem anda a incendiar a nossa floresta? Redes de criminosos, pessoas pagas a preço de ouro ou simples gente da terra que nela se sente frustrada e desenquadrada? O DN foi procurar os incendiários, ouvir as suas histórias e tentar entender as suas motivações. Quase todos confessam o crime mas poucos querem voltar a falar do que aconteceu no dia em que beberam de mais ou, simplesmente, lhes deu para aquilo. A explicação, muitas vezes nem os próprios conseguem arranjar. A verdade é que o assunto alerta para os problemas sociais de um Portugal profundo e tantas vezes esquecido

Três incendiários que confessam crime mas não o sabem explicar

"Ainda hoje me ponho a pensar porque fiz aquele trabalho. Não sei explicar como é que me deu aquilo na cabeça", desabafa, ajeitando o chapéu de palha que a protege do forte sol desta tarde de Agosto. Já passou mais de um ano, e com ele muitos dias de angústia e nervosismo, mas Carminda Fernandes continua sem saber dizer porque botou fogo à mata que circunda a sua casa, no concelho de Oleiros. Apenas recorda que nessa manhã de 8 de Julho, quando foi amanhar a bicharada para a encosta, pegou no isqueiro que ficara no bolso da bata azul, depois de aquecer o café ao marido, e puxou fogo ao pinhal.

Carminda sabe que cometeu um crime que lhe podia ter valido uma pena de cinco anos na prisão. Confessou-o e diz-se arrependida. Mas também sabe que a vida difícil que leva lhe atenuou a culpa, na justiça e na comunidade, ao ponto de a juíza a ter condenado a uma pena suspensa de três anos e de ninguém, entre vizinhos e familiares, se ter zangado com ela. Há 56 anos, tantos quantos tem de vida, que vive na Medrosa de Cima, lugar onde só se chega por um caminho de terra batida e muitas indicações e onde se contam apenas a sua casa e a da vizinha. Os rendimentos tiram-se da terra: batatas, cebolas e couves, e uma galinha ou um porco que se alimenta, mata e depois se vai conservando no sal.

Os recursos financeiros são tão escassos que nem sempre chegam para os medicamentos que há anos a ajudam a livrar-se da bebida. Desde bebé que o vinho faz parte das suas refeições e, se nessa altura, substituía o leite quando este não chegava, agora alimenta uma dependência difícil de largar. Era assim o "jeito de antigamente", conta, foi assim com os pais, os avós e os bisavós. E aqui, assegura, não é um meio fácil para largar a "pinga", pois quando se visita alguém o "copito" é sempre o primeiro sinal de hospitalidade.

No Verão passado este foi mais um elemento desestabilizador da já frágil situação psicológica de Carminda. O tratamento do álcool foi interrompido e os problemas familiares adensaram-se. O filho decidiu mudar-se para o Algarve, o neto ficou ainda mais longe, a falta da mãe, com quem sempre tinha vivido, agudizou-se. Tudo se complicou. "Andava-me tudo a moer e o cérebro ficou cansado. Parecia que tinha a cabeça vazia", recorda com o olhar entristecido, sentada nos degraus de pedra de acesso à sua humilde casa.

Não se vê nem ouve vivalma. Metida no meio dos montes, um dos quais ainda com espetos negros a evidenciar a passagem do fogo, a Medrosa de Cima nem vem nos mapas. O mundo lá fora só chega através da televisão, do telefone fixo, pois as redes móveis não se captam aqui, e as saídas fazem-se a pé ou na velhinha motorizada Casal Boss do marido Manuel, adquirida a troco de duas cabras. As poucas visitas que cá chegam, mesmo esta que quer aflorar um passado que a envergonha e entristece, são recebidas com a simpatia e gentileza de quem faz questão de oferecer o pouco que tem, sejam uns figos apanhados na hora, um queijinho ou uma pinga de jeropiga.

"Sabe, passava aqui uma grande solidão. O marido ia pastar o gado e eu ficava aqui sozinha. Eu bem falava para as galinhas, para os cães... Talvez tenha feito isto só para me ver acompanhada. Não sei", vai desabafando, sem interromper as lides do campo, e apanhando umas cebolas e peneirando os feijões. Carminda não descarta a responsabilidade do seu acto, mas jura que não o cometeu com má intenção. "Assim que peguei o fogo, assustei-me e chamei os bombeiros. Se o lume tivesse vindo para aqui até me levava a casa. Os vizinhos, sabe, metiam as mãos no fogo em como não tinha sido eu", acrescenta. O incêndio até mobilizou meios aéreos, mas em pouco tempo ficou extinto, sem grandes prejuízos. O terreno era do primo e da vizinha. Mas esta, garante, "se era minha amiga, mais minha amiga ficou".

No mesmo dia, Carminda Fernandes foi questionada pela GNR, confessando de imediato o crime. Depois veio a Judiciária e levou-a para Coimbra, onde ficou um dia. Durante quase um ano caminhou para a GNR de Oleiros todas as terças e quintas-feiras, onde se apresentava, quer chovesse ou fizesse sol. Até mesmo quando os guardas lhe diziam para ficar em casa e voltar no dia seguinte, com o tempo melhor. "Cheguei a ir a pé. Demorava duas horas para lá e duas para cá. Outras vezes apanhava boleia ou ia com o marido de motorizada", recorda, orgulhosa do dever cumprido. Sem querer descartar responsabilidades nem desculpar a sua culpa, aproveita para citar uns versos da terra: "Castelo Branco/ Castelo Negro/ onde anda meu amor/ a cumprir o seu degredo." E termina: "Sei que se fizer alguma asneira, pago tudo junto. Mas, acredite, sofri muito. Também já cumpri o meu degredo."

Bebedeira ajudou ao incêndio

O caso de Carminda Fernandes ilustra bem o perfil do incendiário português. Embora nem todos os fogos se expliquem por contextos como este, as investigações demonstram que a maioria dos incendiários tem história clínica. Alcoolismo, demência e atraso mental não são causa directa do crime, mas acabam por desencadeá-lo, num acto impulsivo, e ajudam a compreendê-lo. As mulheres são 10% dos casos e quase sempre estão deprimidas quando cometem o crime.

Gerardo António já pagou com quatro anos de prisão o "disparate" que cometeu no dia 20 de Junho, fez este Verão seis anos. Talvez por isso, à partida, não compreenda a razão da nossa abordagem. "Já paguei pelo que fiz, não sei o que há mais a dizer", afirma, reticente ao início mas acabando por aceitar contar-nos a sua história. Aquilo que se passou diz saber pelo que lhe contaram.

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