Bolsonaro ama Musk que odeia Lula e Janja

Recebido pelo ex-presidente em 2022 quase como chefe de Estado, o multimilionário não quer que o atual regule o X, ex-Twitter, rede pela qual trocou farpas com a primeira-dama.
Publicado a
Atualizado a

"Não está claro como alguém adivinhar a senha do e-mail dela é nossa responsabilidade". Com uma simples publicação no X, ex-Twitter, no dia 20 de dezembro, o multimilionário dono da rede social Elon Musk incendiou a facilmente inflamável política do Brasil. O "dela" da publicação refere-se a Janja Lula da Silva, a primeira-dama brasileira que pretende processar a plataforma, após ter tido a conta invadida por um hacker. Bolsonaristas aproveitaram a deixa para, imediatamente, atacar Janja e louvar Musk, hoje ícone da extrema-direita global.

O caso começou dia 11, quando alguém invadiu o perfil da primeira-dama e publicou ofensas, insultos e conteúdo pornográfico como se fossem da autoria dela. Na manhã de 12, a Polícia Federal (PF) instaurou inquérito para apurar o ataque e a Advocacia-Geral da União, órgão que representa juridicamente o Estado, exigiu do X a preservação de todos os elementos digitais da conta de Janja.

A 13, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão na casa de um hacker de 17 anos, que confessou em depoimento ter agido sozinho, encontrado os dados pessoais de Janja de forma fortuita na internet e invadido, além do perfil no X da primeira-dama, as contas de e-mail e de LinkedIn.

Durante a transmissão do dia 19 do Conversa Com o Presidente, programa emitido nas redes sociais em que Lula aborda a atualidade do governo, Janja falou pela primeira vez na intenção de processar o X pela demora na resolução do problema. "Foi tão difícil fazer com que o Twitter congelasse a minha conta, foi uma hora e meia", queixou-se.

"Eu não sei nem onde processar, se processo no Brasil, se processo nos Estados Unidos, porque processá-los eu vou, de alguma forma", continuou. "Há muitas pessoas públicas com contas invadidas, como o primeiro-ministro da Austrália, então temos, de alguma forma, de responsabilizar essas plataformas e regulá-las, o problema não é só do Brasil, é global".

Lula acrescentou que se deve, sim, "regular as redes sociais" mas reconheceu que fazê-lo sem cair em censura é um "desafio". "Temos que regular seriamente, a União Europeia já o faz mas é preciso que todo o mundo tome cuidado com isso".

Para Janja, "é preciso não só falar de regular as redes como discutir a monetização delas". "Porque hoje elas lucram sempre, não importa se as pessoas são do bem ou do mal, ele [Musk] ficou muito mais milionário com aquele ataque, é essa a questão".

Os deputados da oposição aproveitaram a última frase para ironizarem Janja. O deputado bolsonarista Nikolas Ferreira, célebre por discursar no plenário de peruca para atacar os transexuais, publicou uma foto de uma barraca com a legenda "e pensar que antes do hacker, o Musk vivia aqui".

Mário Frias, secretário da Cultura de Bolsonaro e ex-galã da novela juvenil Malhação, acrescentou que "o Twitter representa só uns 4% da grana dele".

A deputada Rosangela Moro, mulher do senador Sergio Moro, escreveu que "Janja afirmar que Musk enriqueceu às custas dela é uma asneira sem tamanho". "Vamos ao que interessa? Parar de defender hackers e resistir a qualquer projeto de lei que cheire a censura".

"Quem poderia imaginar, né?", disse a parlamentar Carla Zambelli, investigada por perseguir um homem de arma em punho nas ruas de São Paulo, "não demorou muito para Janja pedir a regularização das redes sociais".

A mesma Carla Zambelli havia comemorado, em abril de 2022, a aquisição do então Twitter, hoje X, pelo sul-africano, nos seguintes termos: "viva o Twitter, terra da liberdade", publicou.

Jair Bolsonaro, então presidente da República, compartilhou nesse mesmo dia uma publicação sobre liberdade de expressão feita por Musk. "Espero que até os meus piores críticos permaneçam no Twitter, porque é isso que significa liberdade de expressão".

E ambos, Bolsonaro e Zambelli, tiveram um boom de novos seguidores em 24 horas na rede social - 65 mil e 23 mil, respetivamente, quando a média era 4500 e 1600. Segundo o especialista em tecnologia Christopher Bouzy, ouvido pelo jornal Folha de S. Paulo, 93% dos novos seguidores haviam sido gerados num só dia.

Um mês depois, em maio de 2022, Fábio Faria, então ministro das Comunicações, serviria de cicerone a Musk numa viagem ao interior do estado de São Paulo. Num contexto pré-eleitoral, Musk abraçou Bolsonaro, que lhe concedeu uma Medalha de Honra, e foi apaparicado por ministros, senadores, deputados e anónimos bolsonaristas.

Na ocasião, o ex-presidente colocou à disposição de Musk uma base brasileira de lançamento de foguetes da empresa aeroespacial dele, a SpaceX, e um programa de vigilância da Amazónia, negando, porém, que o sul-africano viesse a ter acesso a informação privilegiada da floresta. "É o início de um namoro que tenho a certeza vai acabar em casamento brevemente", disse Bolsonaro, a seis meses das eleições do ano passado.

Perdido esse sufrágio para Lula, bolsonaristas queixaram-se ao dono do X de censura por verem apagados, por ordem de tribunais brasileiros, comentários na rede sobre fraude nas urnas. Musk respondeu que iria "verificar".

Eleitor declarado de Barack Obama, defensor de causas ecológicas e favorável à despenalização da marijuana até à pandemia, Musk afastou-se da agenda progressista e aproximou-se das pautas de direita ao criticar o pânico com a doença e ao defender a liberdade total de expressão nas redes sociais, para satisfação de Donald Trump e de Bolsonaro.

Janja, entretanto, reagiu àquela publicação do dono do X. "Os meus questionamentos desde o início foram sobre o descaso e a demora da plataforma", afirmou, "e sobre a monetização em cima do discurso de ódio, o meu nome foi rapidamente para os Trending Topics da plataforma, o que já deveria ser um alerta para a plataforma saber que algo atípico estaria acontecendo".

"É necessário repetir que todos estes questionamentos não são só sobre mim mas sobre todas as mulheres que diariamente sofrem ataques misóginos e criminosos na plataforma e recebem o mesmo descaso".

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt