Bolonha sem alunos

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Umberto Eco tem um livro chamado Apocalípticos e Integrados. O primeiro capítulo centra-se na descrição dos conceitos de cultura de massas, popular e erudita e, consequentemente, na necessidade que a cultura, sobretudo de massas, tem de marketing. Eco tenta ser o mais isento, recorrendo sistematicamente a exemplos, de modo a neutralizar o seu discurso.

O último capítulo define quem são os apocalípticos e quem são os integrados. Não é pois, difícil, adivinhar quem são uns e quem são outros. Os integrados são os que consomem a cultura indistintamente, se é que se pode chamar cultura a essa transmissão de conhecimentos que Eco chama de «digeridos». Os apocalípticos são os que defendem a cultura erudita como própria de um público devidamente preparado para fazer a própria interpretação dos conhecimentos adquiridos. Como tal, os apocalípticos são incompatíveis com a cultura de massas e os integrados são um produto da cultura de massas.

Eu sou uma utente massiva da cultura. Não sei se o que consumo é ostensivamente massivo ou, sequer, se me sinto inevitavelmente atraída por produtos/produções culturais que me dispensam de fazer a minha própria leitura. Não estou a pensar nisso quando leio um livro, vejo uma ópera, investigo na Internet. Mas a verdade é que gosto de sentir que não sou a única espectadora, leitora ou consumidora. O mesmo não penso quando me convidam para ouvir uma conferência. O tom monocórdico que à partida o nosso inconsciente identifica com a palavra conferência e o título, normalmente muito mais destinado a apocalípticos do que a integrados, convidam-me a repensar a utilização do meu tempo. Assim tenho perdido inúmeras oportunidades de ouvir comunicações cujo conteúdo ter-me-ia sido bastante útil a longo prazo. Da mesma forma, tenho, por dever ou prazer, ouvido excelentes comunicadores que, para além do essencial do discurso, conseguem verbalizar os efeitos colaterais do tema que se discute, seja de âmbito político, económico, social ou académico.

Recentemente, o Instituto Camões debateu um dos temas menos mediáticos da actualidade diária e curiosamente com inúmeras consequências a longo prazo. Pude assistir a uma mesa-redonda sobre «A convergência europeia do ensino superior».

O título parece feito para ser entendido apenas por apocalípticos e penso que, na verdade, o era. A convergência europeia do ensino superior é questão própria de público específico, o único que o domina. Convergência é uma palavra vaga, europeia é uma palavra gasta e ensino superior é lugar-comum.

Só os professores doutores que trabalham directamente com esta questão conseguem vislumbrar, in extremis, a dimensão do trabalho de converter toda a estrutura do ensino superior a uma convenção, para os leigos vaga, para os entendidos muito complexa, que se chama Convenção de Bolonha.

O que é a Convenção de Bolonha? Em termos gerais, é uma enumeração de artigos que vai revolucionar toda a instituição universitária na forma e no conteúdo. Na primeira, porque obriga à uniformização, a nível europeu, de títulos académicos «transparentes» e «legíveis», no segundo, porque preten- de profissionalizar os cursos existentes por forma a rentabilizar os anos de estudo do aluno, no que se refere directamente à empregabilidade. Naturalmente que convenciona questões como sejam o financiamento de cursos, redução drástica do corpo docente, nivelamento da qualidade em função da facilidade, entre muitas outras coisas que ali se disseram e não vou repetir.

Mas quem é o grande protagonista da Convenção de Bolonha?

Ao contrário do que se possa pensar, o protagonista desta megarreestruturação do ensino superior não foi um ilustre doutor, quase capaz de mudar o mundo. É o aluno e é para ele que, dentro de aproximadamente seis anos, vamos ter um ensino universitário capaz de competir com a economia americana, no saber e no poder.

Curiosamente, o aluno, o motivador do boom das ciências pedagógicas, foi o grande ausente do debate. Atrevo-me a dizer que o aluno, centro das reformas educativas, tem sido, nos últimos anos, o grande ausente da educação. É pena que o público maioritário daquele debate não tenha sido o discente, porque a ausência foge à mais básica regra de qualquer nível de aprendizagem: dominar o conhecimento.

Consolo-me com a riqueza das palavras que ouvi. Palavras proferidas por seis ilustres vice-reitores, representantes das instituições universitárias galegas e portuguesas, e por um moderador de mesa, também professor doutor e digno resistente da passividade. Todos, convergentes e divergentes em certos e determinados conceitos, todos conhecedores e conscientes do problema, mas, mais do que isso, ainda dispostos a falar, a dar a conhecer, a alertar e ainda a integrarem, com forças renovadas, o novo papel que lhes cabe nesta reforma, como cumpre ser a principal função da docência. Afinal, o objectivo último do professor.

Obrigado aos oradores que falaram de um tema que em breve será do domínio dos integrados mas, por enquanto, parece ser só preocupação de aparentes apocalípticos.

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