Boas intenções, inferno e universidades

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A Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência publicou em março passado um relatório intitulado Indicadores de endogamia académica nas instituições públicas de ensino universitário -- 2021/2022, em que usa como definição de endogamia "o recrutamento/contratação de docentes doutorados pela mesma instituição de ensino superior que lhes atribuiu o grau".

O relatório, na linha de um congénere saído há cinco anos, vem confirmar o que há muito se sabe sobre a realidade académica portuguesa, onde a endogamia é uma prática natural. Mas vem também legitimar a demonização de tal prática e ajudar na transformação em senso comum da asserção de que a endogamia nas universidades é um cancro que deve ser combatido, como uma leitura dos artigos de opinião sobre assunto nos jornais nos últimos cinco anos vem confirmar.

A fim de contrariar esta ideia, que me parece nefasta, é necessário frisar, em primeiro lugar, que a endogamia nas universidades decorre mais dos sistemas de oportunidade e das condições estruturais, culturais e económicas da sociedade portuguesa do que de qualquer vontade dissimulada de tais instituições. Em segundo lugar, convém referir que a endogamia não é necessariamente uma característica negativa das instituições universitárias, podendo até ser uma mais-valia substancial, tudo dependendo da abordagem à temática. Em terceiro e fundamental lugar, é urgente distinguir a endogamia do nepotismo, esse, sim, um mal generalizado em muitas universidades, mas que não resulta necessariamente de processos endogâmicos.

Relativamente ao primeiro aspeto, faço notar que, apesar da sua pequena dimensão, Portugal não tem sido um país que se possa notabilizar pela sua mobilidade interna ou por fenómenos migratórios relacionados com mobilidade laboral. Temos tido uma sociedade muito caracterizada por uma vivência urbana, litoral e de fixação e permanência para a vida, tanto no emprego quanto na habitação, ou mesmo no lazer.

Nunca houve, também, uma política de mobilidade estudantil, sendo frequente que os estudantes terminem a sua licenciatura na mesma zona geográfica em que fizeram os estudos secundários, o que também propicia que acabem o mestrado ou até um doutoramento na mesma região. Além disso, há a salientar que, até 2009, fazia-se entrada na carreira académica antes do mestrado e do doutoramento, o que naturalmente fazia com que se ficasse mestre ou doutor(a) na universidade em que se iniciou a carreira.

A endogamia atual não resulta de um objetivo premeditado, é uma consequência imprevista de processos sociais, de sistemas de oportunidade e de organização social.

Quanto ao segundo aspeto, sublinho que, em muitas das ocasiões em que se fala de endogamia académica em Portugal, usa-se o termo errado. Na estrita aceção do termo, não existe endogamia, existe endogenia.

O que caracteriza as universidades portuguesas é a imobilidade do corpo docente e as práticas endógenas da sua formação e investigação (a que podemos juntar processos de autorreferencialidade e autocitações egolátricas). À luz do que afirmei sobre as condições que fomentam a endogenia, a sua caracterização requer talvez um olhar menos antropológico e mais biológico, isto é, de criação, origem, nascimento.

A endogenia não é necessariamente negativa e pode ser competitiva, pró-ativa e transformadora. No mundo em rede em que vivemos, em que o tempo e o espaço se comprimem num permanente aqui e num constante agora, a endogenia não é mais sinónimo de imobilidade ou inércia, provincianismo e isolamento intelectual. Ela pode ser precisamente o contrário de tudo isso: por promoção de espírito de corpo, de sentimento de pertença e da ideia de um coletivo baseado num princípio de escola, de corrente, de sistema, modo de fazer, de concretizar massa crítica, ou de constituição de uma universidade baseada em princípios de vivência igualitária, solidária, e adaptada ao local de implantação.

Por fim, note-se que o processo de demonização da endogenia académica serve apenas o propósito de obscurecimento do verdadeiro objeto que é preciso demonizar: o nepotismo universitário. E assim, chego, enfim, ao terceiro aspeto.

Nas descrições comuns de endogamia académica grande parte dos exemplos referidos são muito pouco exemplos de endogamia/endogenia e muito de nepotismo. Nepotismo é o "abuso que uma pessoa faz da sua posição ou poder para conceder favores aos seus familiares ou amigos, independentemente do seu valor pessoal" (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa). É este o verdadeiro cancro das universidades, com irradiação particular nos concursos de recrutamento e progressão de carreira e metástases nas práticas de favorecimento, de nomeação para cargos, de distribuição de serviço e de obstaculização de investigação e de progressão de carreira...

Trata-se da nepo-universidade dos amigos, a universidade como deve ser, que dispensa princípios verticais de funcionamento e coleciona exemplos de tráfico de favores.

Aquilo a que chamo nepo-universidade não quer júris de concursos de recrutamento com maioria de membros externos à universidade, como a lei exige, defende, como se afirma num volume da coleção de ensaios da Fundação Francisco Manuel dos Santos (A Universidade como deve ser, de A. M. Feijó e M. Tamen) que os júris "devem ser exclusivamente internos às universidades" e que os concursos "devem ser (...) insindicáveis, quer dizer, não sujeitos a recurso pelos interessados", porque "São os professores das universidades quem apesar de tudo pode ter uma melhor percepção das qualidades de pessoas que promoverão ou que procurarão vir a ter como colegas."

De boas intenções o inferno está cheio. As universidades também.

Professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

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