Beanito, Augusta, eu e tu

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Tinha dez anos. Era surdo-mudo. A mãe, guineense, trá-lo a Portugal na esperança de que aprenda a falar. No hospital, o menino desaparece enquanto ela anda de guichet em guichet. Faz queixa à PSP, que passa o caso à PJ. Dez dias depois, a criança é descoberta. Numa gaveta do Instituto de Medicina Legal. Está lá desde o dia em que desapareceu, após ter sido colhida por um comboio na linha da Amadora, a muitos quilómetros do hospital onde foi com a mãe. Na PSP, o alerta do desaparecimento, enviado a todas as esquadras, nunca se encontrou com o relatório sobre o menor morto por um comboio; a PJ, onde o caso só chegou quatro dias depois da queixa, garante que indagou junto do IML, mas este retorque: era impossível não se ter referido o cadáver de uma criança. Foi aliás uma funcionária do IML que, vendo na TV a notícia sobre a criança desaparecida, se lembrou do menino morto que ninguém reclamou. Não passa nada, porém: a mãe enterra o filho e regressa à Guiné.

O caso é de Novembro de 1992. Lembro-o muitas vezes como exemplo de tudo o que não deve, não pode suceder. E da monstruosa indiferença disso a que chamamos "os serviços" (e que tantas vezes servem tão pouco), da constatação amarga de que uma morte pode inquietar tão pouco. Lembro-o ante Augusta Martinho, a mulher encontrada morta na sua casa da Rinchoa quase nove anos depois de o seu desaparecimento ter sido comunicado à polícia por uma vizinha e um familiar. Augusta, que faria sábado 96 anos, recebia uma pensão - foi a caixa de correio cheia de cartas da Segurança Social que levou a vizinha a agir; Augusta pagava impostos - tanto que o incumprimento determinou a venda da sua casa em hasta pública. Augusta teria água e luz e talvez telefone - entretanto decerto cortados; Augusta não pagava condomínio desde 2002, nem era vista a passear o seu cão, a ir à mercearia. Ainda assim, nenhuma das instituições criadas para zelar por ela - da polícia à Segurança Social e ao fisco (que nada fiscalizou, limitando-se a confiscar) - saiu da papelada para verificar se aquele nome, aquele número, aquela "utente" tinha algum motivo para não receber os cheques nem pagar as contas, não abrir a porta, não ser vista, em suma, não dar sinal de vida.

Há quem, a respeito de Augusta, fale de solidão. Sim, Augusta vivia só, e talvez (alguém pôs essa hipótese?) quisesse viver assim. Mas não foi por falta de quem se preocupasse com ela que passou nove anos no chão da cozinha: uma boa vizinha fez tudo o que pôde, até descobriu os familiares da senhora. Esta não é uma história de solidão, ou sequer do abandono dos idosos, a suscitar choradinhos sobre a "desumanização urbana" (no campo é que era, etc.). É uma história de incompetência e indiferença institucional. Insofismáveis, intoleráveis, obscenas. Mas por isto ninguém se lembrará de pedir cabeças.

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