Bayard Rustin: ele tinha um sonho

Um <em>biopic</em> sem rasgo mas com um ator de cabeça erguida e charme espirituoso pode sobreviver à irrelevância. Eis o mérito de <em>Rustin</em>, de George C. Wolfe, narrativa de um rosto oculto do movimento dos direitos civis, a que Colman Domingo dá vida com garra sorridente e lágrima no canto do olho. Uma estreia Netflix.
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Para a história, o que ficou da Marcha sobre Washington foi o número impressionante de 250 mil pessoas reunidas em frente ao Lincoln Memorial e o discurso de Martin Luther King, com a célebre expressão "I have a Dream!". Porventura alguém conhecerá o nome de Bayard Rustin (1912-1987) e o seu papel fundamental na organização desse protesto pacífico de 28 de agosto de 1963? O ofício de recuperação da memória desta personagem é assumido por Rustin, o filme de George C. Wolfe que retrata o ativista queer esquecido no barulho das luzes, apesar da sua influência decisiva nos trabalhos que levaram à maior manifestação cívica e antirracista registada até à data. Na interpretação impecável de Colman Domingo, aqui está um dos possíveis candidatos aos Óscares, da série "temos ator mas o filme deixa muito a desejar".

George C. Wolfe, que antes nos deu Ma Rainey: A Mãe dos Blues, extraindo de Viola Davis uma daquelas composições de fisicalidade capazes de fazer tremer o chão, consegue desenvolver algo mais ou menos parecido com Colman Domingo, embora o aspeto íntimo desta figura tenha mais que ver com a captação de um misto de sofrimento e ironia. Estamos a falar do homem que seria quase o braço direito de Martin Luther King, o seu conselheiro em relação à resistência não-violenta, que se dedicou à causa de corpo e alma, sendo muitas vezes punido pela sua carne fraca...

Rustin, enquanto homem negro e gay, viu a sua dose de angústia existencial redobrada, inclusivamente dentro da própria comunidade, que usava a homofobia "dos brancos" como argumento para minimizar a exposição pública daquele que era, na verdade, a mente hiperativa por trás do movimento dos direitos civis. É isso que se testemunha nesta produção Netflix, a acompanhar a jornada intensa de Rustin, desde a ideia da marcha ao seu laborioso planeamento e concretização, envolvendo uma equipa em sintonia com o ritmo do seu líder omisso.

A debilidade de Rustin, o filme, fica evidente, porém, no modo como o discurso das personagens, o seu debitar de lugares-comuns, seca o tom espirituoso às vezes alcançado com sucesso. Aliás, o brilho performativo de Colman Domingo é sempre mais cativante quando o seu humor disfere golpes inesperados no drama. Mas infelizmente George C. Wolfe quis mesmo repetir a fórmula engomada do biopic sem tempo para subtilezas - o que importa é que se perceba a mensagem, com flashbacks de violência racista metidos a martelo e diálogos que, apesar do esforço, não acrescentam nada à consciência do espectador. Já para não falar do casting de Chris Rock (a interpretar o ativista Roy Wilkins), que dificilmente se cola ao registo dramático, de tão associado que o ator está à comédia. De resto, lutamos um pouco para ignorar o seu falso cabelo branco.

Tirando isso, Rustin não falha na reconstrução do espírito e dinâmica de trabalho das semanas que antecederam a marcha, nem na escolha de um ator protagonista que dá ao filme a sua pequena glória: uma presença humana que resiste à dimensão plástica de reproduzir uma personalidade. Não lhe ficava nada mal uma nomeação para Óscar, não.

dnot@dn.pt

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