Balanço de um ano de pandemia de covid-19: da inevitabilidade a lições para o futuro

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Umas vezes ganha-se, outras vezes aprende-se", adágio atribuído a Nelson Mandela e ensinamento que tão bem se aplica ao nosso dia-a-dia desde a declaração de pandemia emitida há mais de 13 meses pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mais precisamente no dia 11 de Março de 2020. Inevitavelmente um dos maiores desafios para todos nós consiste, consequentemente, em saber o que aprendemos e o que vamos e queremos mudar no futuro no âmbito de um contexto repleto de oportunidades de aprendizagem.

A primeira lição a extrair é que consideramos erradamente as pandemias como fenómenos raros e imprevisíveis de tal forma que nas ciências económicas estes fenómenos enquadram-se no conceito de acontecimentos altamente improváveis e de consequências imprevistas, cunhados de "Cisnes Negros" por Nassim Taleb em 2007.

Ora a verdade é que a história nos ensina, se é que a história nos ensina alguma coisa como o filósofo alemão Friederich Hegel questionou no início do século XIX, que as pandemias fazem parte dos anais da humanidade e nunca foram nem serão "Cisnes Negros". Notemos que no primeiro quartel do século XXI já vamos na segunda pandemia e que no século passado tivemos três - em 1918, 1957 e 1968 - além de várias ameaças. Na pandemia de 1918-1919, também conhecida por gripe espanhola (spanish flu), estima-se que tenha sido infectada, pelo menos, um terço da população mundial, aproximadamente 500 milhões de habitantes, e que tenham ocorrido cerca de 50 milhões de óbitos, segundo dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos da América. Fruto deste impacto a gripe espanhola ainda é conhecida como a "mãe de todas as pandemias" e faz parte do imaginário colectivo dos episódios mais dramáticos da história da humanidade.

Constatámos, ainda, que estamos perante a primeira pandemia de um coronavírus. Em todas as pandemias anteriores foram identificados vírus influenza ou foram atribuídas à actividade deste vírus responsável pela gripe. A inexistência de vacinas ou fármacos antivirais específicos contra o coronavírus contribuiu, assim, para uma menor capacidade de resposta e, necessariamente, para um maior impacto da presente pandemia.

Compreendemos, também, que se as pandemias são inevitáveis, há factores para os quais o mundo e a sociedade que fomos construindo têm certamente um papel facilitador. Dentro destes merecem destaque (i) factores facilitadores da ocorrência e da disseminação do vírus e (ii) factores que prejudicam o reconhecimento e a valorização da pandemia e a adesão a medidas imperativas para sua prevenção e controlo.

No que toca aos factores facilitadores da ocorrência e da disseminação, as alterações climáticas e a destruição dos habitats naturais favorecem a emergência e a recombinação de microrganismos, em particular vírus, de outras espécies animais com capacidade de atravessar a barreira das espécies e provocar doença no homem, o que se designa por zoonose ou doença zoonótica. A intensa interconexão global com uma média diária a sete dias, em 2019, de 102 mil a 125 mil voos comerciais e um total 4,5 mil milhões de passageiros embarcados no mesmo ano (dados dos sites flightradar24 e statista) favorecem a fácil e rápida disseminação de doenças à escala global. Por exemplo, da cidade de Wuhan, na República Popular da China e o epicentro da actual pandemia, partiam diariamente voos para três metrópoles da União Europeia: Milão, Paris e Londres. Do mesmo modo, na disseminação das doenças não nos podemos esquecer dos fluxos migratórios provenientes de zonas de conflitos ou de elevada degradação económica.

No atinente aos factores que prejudicam o reconhecimento e a valorização da pandemia, tornou-se claro que nos dias de hoje e para prejudicar o seu combate, temos de eliminar duas novas pragas, a infodemia e a proliferação das fake news, cuja disseminação viral ocorre sobretudo nas redes sociais. O impacto destas novas pragas é de tal modo significativo na desvalorização da ciência e do conhecimento que a OMS, entre inúmeras outras organizações, estabeleceu um programa específico de prevenção e minimização dos seus efeitos. Do sucesso destes programas dependerá também a nossa resposta a futuras ameaças a nível local ou global.

Os últimos 13 meses têm sido ricos em oportunidades de aprendizagem e melhoria, sendo certo que a pandemia ainda não cessou. Reconheçamos que, se nada aprendermos e nada mudarmos, a pandemia terá sido mais uma intercorrência e uma oportunidade desperdiçada. O grande ensinamento adveniente desta pandemia, o SARS-CoV-2, é a importância da preparação e da organização assente na ciência e no conhecimento. Se decidir em pandemia é decidir na incerteza, decida-se com a melhor fundamentação disponível, com transparência, com capacidade de avaliar e de monitorizar e sabendo comunicar. Nunca esquecendo que "é preferível ser aproximadamente certo do que precisamente errado" (Warren Buffet), que a "decisão certa pode ser a decisão errada se tomada demasiado tarde" (Lee Iacocca) e que "a boa comunicação é a ponte entre a confusão e a clareza" (Nat Turner).

A pandemia veio revelar sem ambiguidades, permitindo a comparação entre diferentes países em sede de resposta, a importância crítica de um Serviço Nacional de Saúde forte, diferenciado e de excelência, com profissionais motivados e reconhecidos. Na resposta a uma ameaça desta magnitude, foi o Serviço Nacional de Saúde, na prevenção e no controlo, no ambulatório e no internamento, que provou a sua imprescindibilidade. Comparativamente com o total de infectados foram poucos os que precisaram de internamento em unidades de cuidados intensivos para ventilação mecânica invasiva e, nas situações de maior gravidade e complexidade, de suporte de vida extracorporal com dispositivos de
ECMO (Extra Corporeal Membrane Oxygenation). Para registo só houve ECMO no Serviço Nacional de Saúde!

Fica uma dúvida por esclarecer. Se o Serviço Nacional de Saúde tivesse de antemão a organização, os meios e os recursos necessários, o que poderia ter feito mais e melhor no combate à pandemia e, em particular, na prestação assistencial aos doentes não covid-19?

Passando do plano nacional para o regional, a pandemia veio reforçar, na União Europeia (UE), a importância de uma melhor coordenação, articulação e comunicação. Perante uma ameaça a activos de importância incomparável, a saúde e a vida humana, a UE não esteve preparada e não soube ou tardou a falar a uma só voz. A UE revelou, ainda, fragilidades e dependências estratégicas imprevistas na área de produção, armazenamento, inovação e desenvolvimento de medicamentos, dispositivos e equipamentos vitais, bem como na vigilância epidemiológica e na intervenção concertada à escala regional e global. Espera-se que a anunciada discussão dos estatutos e regulamento do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC) seja um passo na direcção certa.

Em suma, a pandemia foi e continua a ser um acontecimento extremamente penoso, mas trouxe a oportunidade de nos tornarmos melhores, mais fortes e mais coesos.
A resposta aos desafios da pandemia começou ontem, continua hoje e consubstancia-se amanhã. Saibamos aproximar o saber e o conhecimento às nossas atitudes e comportamentos e, sobretudo, às decisões que tanto nos afectam individual e colectivamente.

Filipe Froes é pneumologista, consultor da DGS, coordenador do Gabinete de Crise Covid-19 da Ordem dos Médicos, membro mdo Conselho Nacional de Saúde Pública.

Patricia Akester é fundadora do Gabinete de Propriedade Intelectual/Intellectual Property Office (GPI/IPO) e Associate, CIPIL, University of Cambridge.

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia.

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