Bactérias limpam a terra
Da terra se diz que é mãe por ser ela que brota e acolhe a vida, num ciclo constante de renascimento. Mas a prole humana raramente tem sido grata, agredindo-a e negando-lhe muitas vezes o cumprimento dos ciclos essenciais de renovação da vida natural. Cientificamente falando, o solo constitui um elemento fundamental para a sobrevivência dos ecossistemas. Através de um sistema dinâmico, interactivo e altamente complexo, a camada superficial da crosta terrestre desempenha um papel crucial, nomeadamente na regularização do ciclo hidrológico, condicionando a quantidade e qualidade da água. A preservação deste recurso básico não é só importante para a produção dos alimentos. A produção vegetal e a preservação das espécies biológicas terrestres constituem outras funções essenciais do solo. E se soubermos que uma camada de trinta centímetros de terra leva mil a dez mil anos a ser formada, tomamos consciência de que se está perante um recurso finito, limitado e não renovável.
A verdade é que ao progresso das sociedades e ao bem-estar dos homens esteve desde sempre associado o uso da terra como depósito dos resíduos mais diversos, que a contaminam, afectando irremediavelmente o seu papel renovador. A lista das origens da degradação do solo é longa e todos – autarquias, indústrias, sector agrícola e cada um de nós – são responsáveis pela diminuição da fertilidade, da quantidade de carbono, da biodiversidade, da capacidade de retenção da água dos solos e ainda pela interrupção do ciclo gasoso e do ciclo dos nutrientes. Apenas alguns números: na União Europeia, calcula-se que 52 milhões de hectares de solo – 16 por cento da superfície terrestre total – estão afectados por processos de degradação. No que cabe a Portugal, um quarto dos concelhos portugueses tem solos contaminados ou potencialmente contaminados, segundo um estudo realizado por cinco universidades portuguesas e divulgado em 2006. Um quadro que não reflecte inteiramente a realidade portuguesa, dado que este levantamento, feito de norte a sul do país, apenas se refere aos locais inseridos na rede nacional das áreas protegidas ou abrangidos pela Reserva Ecológica Nacional. Deixa de fora os pontos mais negros, como as zonas das lixeiras municipais, postos de abastecimento de combustíveis, ou zonas industriais. Mas já em 2000, o primeiro Inventário Nacional sobre Solos Contaminados revelava a existência de 22 mil locais com solos e aquíferos contaminados devido essencialmente a actividades industriais.
Serve o intróito para enquadrar a importância da investigação científica no combate a este flagelo que nos enfraquece enquanto moradores dependentes da saúde do solo. Sendo a situação há muito insustentável, a ciência e a tecnologia procuram desenvolver formas de limpeza e recuperação dos terrenos. A remoção dos metais pesados que são depositados ou enterrados na terra, provenientes das descargas industriais, das explorações mineiras e petrolíferas, dos aterros, mas também dos fertilizantes e pesticidas agrícolas, tornou-se uma emergência em virtude dos riscos que representam para a saúde humana, vegetal e animal. Os metais tóxicos tendem a concentrar-se nas camadas superiores do solo e a aderir facilmente às argilas e outras partículas, criando condições para que os elementos nocivos à saúde entrem na cadeia alimentar, através das raízes das plantas. Mas a mobilidade das terras e a acção das chuvas conduzem a outro efeito nefasto: os metais são arrastados para os lençóis freáticos, afectando a qualidade das águas subterrâneas que normalmente são utilizadas no abastecimento doméstico.
«Remediar» para erradicar
São várias as técnicas utilizadas para minimizar estes ciclos intermináveis de contaminação. Uma delas, muito dispendiosa, é a remoção da camada superficial de terra, para posterior incineração e extracção dos metais. Outra, ainda bastante utilizada – foi o caso dos solos da Expo’ 98 – é a remoção e deposição em aterro, um método não só dispendioso como altamente lesivo dos ecossistemas. Retirada a camada viva do solo, sobram as areias e as camadas mais degradadas e pobres da terra. Sendo necessários, como vimos, centenas ou milhares de anos para a produção de novo solo com todas as suas propriedades biológicas, cada operação deste tipo, está bem de ver, é um passo largo no sentido da desertificação.
Tornou-se então urgente desenvolver estratégias que possibilitem a despoluição das terras in loco. A bio-remediação e em particular a fito-remediação têm sido as mais estudadas. Esta última usa plantas superiores com capacidade de absorver e reter os metais pesados. Sendo um processo eficaz e promissor tem o inconveniente de ser lento. Dura, pelo menos, o tempo de crescimento da planta e, consoante os níveis de concentração, pode exigir vários ciclos de plantação até à remoção completa dos metais.
De uma forma geral, a bio-remediação congrega as atenções de uma boa parte da comunidade científica. Consiste na utilização de seres vivos, com vista a remover ou conter os contaminantes presentes no solo, de modo a possibilitar a sua reutilização. São vários os meios utilizados ou em estudo, destacando-se o recurso a estirpes de microrganismos – bactérias ou fungos – capazes de acelerar o processo de degradação da matéria orgânica e deste modo intensificar a intervenção da população microbiana no sistema de tratamento. Foi precisamente este o método aprofundado por uma equipa do IBMC – Instituto de Biologia Molecular e Celular, da Universidade do Porto – e do Requimte / Instituto Superior de Engenharia do Porto (ISEP), liderada por Paolo De Marco. Através de uma combinação inovadora de estirpes bacterianas resistentes a metais pesados com outras capazes de degradar poluentes orgânicos, os investigadores conseguiram proporcionar e potenciar o trabalho de bio-remediação ou limpeza da terra contaminada. Resultados que valeram uma publicação, em Junho, na revista científica Biodegradation.
O trabalho de pesquisa teve início em 2000, quando esta equipa, integrada num projecto europeu, identificou 32 bactérias metilotróficas, caracterizadas por serem muito resistentes aos metais pesados mesmo em ambientes adversos, a baixas temperaturas ou com níveis extremos de acidez do solo. As amostras de onde estas bactérias foram isoladas chegaram de locais bem diversos, como Estarreja ou um lago alcalino da Sibéria. Mais recentemente, do conjunto de estirpes recolhidas, o grupo do IBMC e do Requimte seleccionou quatro que evidenciaram especial capacidade de resistência aos metais. Num ambiente de microcosmos, utilizando pequenas quantidades de solo, os investigadores procederam a várias combinações de cada uma destas estirpes com outras bactérias conhecidas por degradarem os poluentes orgânicos, designadamente o MTBE, um aditivo da gasolina, e o TCE, correntemente usado como solvente para remover manchas de placas metálicas. Trata-se de compostos muito utilizados na indústria e frequentemente depositados nos solos, contaminando as terras e os lençóis freáticos.
Testadas numerosas combinações, algumas sem resultados favoráveis, o grupo de investigadores acabaria por encontrar associações mais proveitosas entre uma bactéria resistente e outra capaz de degradar os poluentes orgânicos. Como disse à nm o coordenador do projecto, «a mistura das duas estirpes deu um efeito bem superior à soma dos efeitos singulares», ou seja, a interacção obtida entre ambas permitiu não só um trabalho conjunto como se potenciaram mutuamente. Os resultados da pesquisa mostraram, assim, «a capacidade de algumas bactérias para aliviar a carga inibidora devido à presença de metais pesados, possibilitando que outros organismos actuem na remoção do MTBE e TCE».
Paolo de Marco esclarece, entretanto, que estas combinações bacterianas «não erradicam os metais do solo, eliminam apenas a poluição orgânica», a parte degradável da poluição e também a mais perigosa, por ser aquela que mais facilmente se infiltra no solo e atinge os lençóis freáticos. A ser transposta para a realidade, sugere o investigador, esta técnica poderia ser complementada pela fito-remediação, que mais facilmente retiraria os restantes elementos nocivos.
Lições para a ciência
Este projecto de investigação fornece à comunidade científica mais do que ferramentas de trabalho para o desenvolvimento de métodos e técnicas de combate à contaminação dos solos. Tenta responder igualmente a algumas dificuldades que os investigadores defrontam na utilização de microrganismos especializados na bio-remediação de locais poluídos. Os resultados são habitualmente pouco animadores. Uma das razões, segundo Paolo De Marco, deve-se ao facto de «as bactérias poderem actuar bem no laboratório mas não sobreviverem em ambiente real. Podem não ser competitivas na presença de outros elementos». Daí que nos últimos dez anos, os microbiologistas tenham vindo a apostar «numa nova abordagem que tenta isolar as bactérias ou micróbios mais resistentes e adaptados aos ambientes reais, de modo a torná-los bons candidatos à utilização no campo».
Todo o projecto de investigação foi construído nesse sentido, procurando uma maior eficiência da bio-remediação mesmo nas condições mais adversas. Por isso, o coordenador acredita que os resultados agora conseguidos no espaço confinado do laboratório sejam transponíveis para os solos reais. Uma hipótese que demorará certamente a ser testada, porque a ética e as regras da ciência exigem que antes de proceder a testes no ambiente real, os investigadores passem por experiências graduais de mesocosmo, durante as quais os frasquinhos de vidro do laboratório são substituídos por sacos de grandes quantidades de solo inoculado com as várias estirpes bacterianas e expostos à chuva, ao sol, ao frio e ao calor. Mas essa será uma tarefa apropriada, já não tanto a um biólogo especializado em microbiologia, como Paolo De Marco, mas a engenheiros ambientais e químicos, mais capacitados para transpor este tipo de tecnologia para a realidade. Os dados estão lançados, as pesquisas fundamentais prosseguem num doutoramento do ISEP, que está a usar as estirpes bacterianas seleccionadas pela equipa de De Marco, um italiano que há 13 anos trocou a sua cidade, Milão, pelo Porto, atraído por uma matemática portuguesa, com quem casou e tem dois filhos.
Palavras-chave
Solo é geralmente definido como a camada superficial da crosta terrestre. Consiste num sistema dinâmico que preenche muitas funções e desempenha um papel crucial para a actividade humana e sobrevivência dos ecossistemas. Os processos que permitem a sua formação e regeneração são extremamente lentos – entre centenas e milhares de anos, fazendo dele um recurso não renovável.
Bactéria organismo microscópico (microrganismo) composto por uma única célula de estrutura muito simples, sem núcleo e geralmente desprovida de clorofila. Reproduz-se muito rapidamente. Cada uma divide-se, dando origem a duas novas bactérias. Em poucas gerações, uma só bactéria dá origem a milhões de outras exactamente iguais. Dividem-se em bactérias aeróbias (que para sobreviver necessitam de oxigénio) e anaeróbias (que não precisam de oxigénio); as bactérias heterotróficas (alimentam-se de substâncias orgânicas de origem vegetal ou animal) e as autotróficas (que dependem apenas de elementos minerais e dióxido de carbono).
Microbiologia é a ciência que estuda os microrganismos, ou seja, os seres vivos de dimensões microscópicas que existem como células únicas ou como grupos de células. O seu nome tem origem em três vocábulos gregos, mikros (pequeno), bios (vida) e logos (ciência). Estuda as bactérias, os fungos, os protozoários e as microalgas e também os vírus. O objectivo do microbiólogo é entender o modo como os microrganismos funcionam com vista a encontrar formas de explorar os aspectos benéficos da sua actividade e evitar os seus aspectos negativos.
Bio-remediação usa os seres vivos, habitualmente plantas, bactérias ou fungos, para acelerar a degradação de poluentes do solo ou de zonas aquíferas. Permite que a despoluição seja feita no local, sem necessidade de remoção das terras e encaminhamento para incineração.
Fito-remediação é o tipo de bio-remediação que utiliza as plantas no próprio local para reduzir a poluição no solo ou em corpos de água. Esta tecnologia permite que os poluentes sejam transferidos para a parte aérea das plantas, podendo depois ser removidas e encaminhadas para incineração.