B Fachada vs. Marco Martins

A maior revelação dos últimos tempos da música moderna portuguesa, B Fachada, encontra Marco Martins, o realizador de <i>Alice, </i>prestes a estrear novo filme e com uma peça de teatro em cena. Conversa imprevisível com mais pontos de contacto do que seria possível. Dois cavaleiros da transdisciplinaridade cultural portuguesa.
Publicado a
Atualizado a







Cada um de vocês tem a particularidade de se envolver em vários projectos e nas mais variadas áreas. Sobra até a ideia de que são um pouco «rapazes da Renascença». Sente-se que não podem estar parados…
B Fachada (B.F.) –
Renascença, não… Nesse tempo eles forçavam a multiplicidade cultural. Connosco, tem que ver com a dispersão natural deste século. É muito difícil estar quietinho a fazer apenas uma coisa, sobretudo quando os media estão mais integrados uns nos outros. Na música é muito complicado separar a música do disco físico, ou seja, do objecto, que alberga ilustrações, livros, vídeos, etc. É impossível alguém dizer que só faz som ou imagem de uma maneira única.
Marco Martins (M.M.) – Sim, o nosso caso não passa por uma questão de virtuosismo, ao contrário da Renascença. Há uma vontade de saltar de área para área. No fundo, as áreas complementam-se nos trajectos.

Há uns tempos, era comum vermos os realizadores portugueses parados anos e anos à espera do próximo filme…
M.M. –
Isso é verdade. Parecia que o pessoal parava! No meu caso há muito pouca vontade de estar parado. Eu não consigo descansar estando parado, só o consigo fazendo outras coisas que não faço habitualmente.
B.F. – Isso é coisa geracional.
M.M. – O meu novo documentário no Japão,Traces of a Diary, passa por aí – estava saturado de uma rodagem longa e decidi ir para o Japão um mês e meio fazer um documentário. E descansei, de facto! De repente, mudo a linguagem – em vez de uma equipa de trinta pessoas, trabalho apenas com três. Fiquei com tempo para conhecer e ouvir novas pessoas, tudo aquilo que não tens numa longa-metragem.
B.F. – É mais importante descansar as ideias do que o corpo. Desde 2007 já fiz quatro EP e dois discos grandes, com um documentário e muitos concertos pelo meio, já para não falar de estar ligado agora ao projecto Diabo na Cruz. Enfim, não há férias… No meu caso, há a necessidade de fazer discos com projectos completamente diferentes uns dos outros.

Marco, se um dia fizesse um projecto audiovisual com o B, que tipo de universo poderia explorar?
M.M. –
Antes de Como Desenhar Um Círculo Perfeito nunca tinha abordado questões amorosas e esse é o tema do B Fachada. Portanto, essa abordagem interessava-me. Tenho dificuldade em escrever sobre esse tema. Mas adoro as letras dele – não sei de onde lhe vêm essas ideias.
B.F. – Em parte vem de um lado de obsessão pessoal, ainda que formal e que parte de referências que vêm de trás, principalmente da literatura. Sinto que é uma necessidade da minha geração em Portugal. Relacionamo-nos de uma maneira muito fascista, como se não tivessem existido os anos setenta ou a emancipação da espécie. A monogamia foi-se transformando numa questão de posse em vez de ser uma questão de partilha. Acho importante desconstruir a lógica racional, aquela que está na cabeça das pessoas. Nesse aspecto, há coisas na peça do Marco, Num Dia Igual aos Outros, que têm que ver com o meu imaginário sem passar pelas relações amorosas.
M.M. – E depois a música do B tem também um lado de ironia e de humor, enquanto eu tento criar sempre coisas muito obsessivas e fechadas. Gosto imenso, quando ouço letras dele como «que bom ter má fama e ficar sozinho na cama» – acho que nunca iria conseguir escrever algo assim!

E B Fachada, como seria se tivesse de fazer música para um filme do Marco?
B.F. –
Só sei fazer canções, e aplicando isso ao cinema acabaria por ter de ser um projecto muito específico para aguentar isso. Por acaso, acho que faz falta um musical! Penso que o Marco era capaz de o fazer!
M.M. – Falando dessa multidisciplinaridade, agora estou a preparar um espectáculo de dança com a Clara Andermatt. Será no São Luiz e será sobre a cidade em si.

Esse aspecto dos diálogos entre os criadores será mesmo enriquecedor ou tem algo de moda passageira?
M.M. –
Esse tipo de colaboração, às vezes, pode ser algo muito doloroso, sobretudo quando sentimos que estamos a ceder. Tem que ver com as concessões... Num processo de colaboração nunca se pode ter a sensação de que alguém está a ceder. Quando isso acontece, está a partir-se de um pressuposto errado. Mas quando a base é a verdadeira colaboração, tudo pode funcionar, sim. E é sempre bom partilharmos o nosso universo com alguém com quem se tem afinidade.
B.F. – Numa colaboração mesmo directa temos de estar sempre a acrescentar e nunca limitar. Nesses diálogos, quando os criadores estão sempre a contrariarem-se, nunca se chega a nenhum lado. Uma colaboração a sério passa por uma sequência de monólogos em que um vai acrescentando sempre qualquer coisa àquilo que vem antes.
M.M. – E há a questão de partilhar visões e referências muito próximas. Em qualquer trabalho criativo as peças começam a encontrar uma ordem segundo a visão inicial. Claro que se essas visões começam a ser muito distintas nunca se chega a um final. Isso leva-nos àquela questão de gostar de trabalhar sempre com as mesmas pessoas. Eu repito pessoas com quem partilho universos criativos e que podem gerar conversas contínuas.

Se o Marco, com esse grupo criativo chamado Arena tem feito uma associação contínua com actores e criadores, já o B Fachada, associado à editora Flor Caveira, vai marcando uma viragem na música independente portuguesa destes tempos. Ainda assim, cada vez há menos amarras com o colectivo Flor Caveira.
B.F. –
Sinto que em Lisboa nunca há uma grande partilha. O que existe é um associativismo que está mais ligado à falta de meios do que ao propósito de criar em conjunto. Por exemplo, no Porto juntam-se para fazer música, enquanto em Lisboa se juntam por castas.
M.M. – Com a Arena, quando nos juntamos, a ideia não é formar um grupo para criar em grupo. Estou convencido de que os grupos teatrais para terem uma dinâmica própria têm de conviver juntos. E no teatro o que tem acontecido é ser uma pessoa apenas com as outras a gravitarem à sua volta. Com a Arena, a ideia é eu ter uma ideia interessante e depois poder chamar as pessoas que gosto e vice-versa. Ninguém na Arena tem aquela ideia de exclusividade, de só trabalharmos uns com os outros.
B.F. – Na música não é significativo se trabalhamos sempre com os mesmos. Por exemplo, tenho um acordo quase vitalício com o estúdio onde gravo, mas isso não confere significado aos meus discos. No cinema já é diferente. Veja-se o caso de Lina Wertmüller, cujos filmes são quase todos com Mariangela Melato e com Giancarlo Giannini. Isso confere significado, faz parte da assinatura, do imaginário, e cria um mundo. É quase como se ela estivesse sempre a fazer o mesmo filme, tal como eu, que tenho a sensação de estar sempre a fazer a mesma canção.

Cada vez vai acumulando mais experiências teatrais. Acredita que o teatro vai contaminar cada vez mais o seu cinema?
M.M. –
Sim, de uma forma geral tudo o que fazemos contamina o nosso trabalho. Mas aqui, nesta nova peça, houve um trabalho de disciplina: foi a primeira vez que trabalhei com um texto que não era meu. E isso foi muito interessante. Por muito que lutasse, aquilo tinha aquela forma. Neste caso, como era um texto muito bem escrito e com uma hora e vinte, nem se punha a questão de fazer cortes. Isso influencia muito. Se nunca tivesse feito este texto nunca poria certas questões no meu cinema, sobretudo porque temos tendência a acreditar que o nosso universo está ligado somente à nossa escrita. Não é bem assim, podemos agarrar num outro texto e continuar a trabalhar no nosso universo.
B.F. – Mas o texto ali não é o mais importante. O texto é que serve a situação e para as personagens mudarem e se desenvolverem ao longo da peça. Se a literatura é uma arte do tempo e se desenvolve ao longo do tempo, o texto de John Kolvenbach basicamente serve para o desenvolvimento das personagens.
M.M. – Sim, não é um texto literário, no sentido de as personagens dizerem coisas muito interessantes. Digamos que é um texto muito funcional.

Isso de se dizer que faz «folclore muito erudito» parece ter pegado. Dá-se bem com essa catalogação?
B.F. –
Há aí muita malta e musicólogos que andam para aí a dizer que sou uma fraude porque não faço nada folclore erudito, ao que eu respondo que nunca disse que fazia folclore erudito. O que disse sempre é que fazia «folclore muito erudito» e isso é completamente diferente!
M.M. – [risos].
B.F. – A erudição, num sentido lato, tem apenas que ver com quantidade de conhecimento e com a maneira como armazenamos esse conhecimento de maneira a ligá-lo ou a mantê-lo disperso no cérebro. Mas, aplicado à música, a erudição sempre se aplicou a uma música que não era pop ou do folclore. Na verdade, aquilo que faço é precisamente agarrar na pop e no folclore e tentar impor-lhe aqueles processos que aprendi da arte erudita e que são usados de maneira transcendente. Só que eu uso-os como se fossem brincadeiras. Daí a questão da intertextualidade, onde sou capaz de citar o verso de alguém, mudando-o um bocadinho. Na arte erudita, esses são processos que levam com uma grande reflexão e escolha por detrás. No meu caso, uso como provocação.
M.M. – Sinto, sobretudo, uma ironia enorme e um humor muito provocador.

Fez algo que poucos cineastas fazem: exibir o seu novo filme (Como Desenhar Um Círculo Perfeito) no Festival do Rio e, depois, remontá-lo. Vamos ver no IndieLisboa um novo filme…
M.M. –
Sim, é raro. O processo do segundo filme foi complicado e nem me tinha apercebido disso quando o fiz. Complicado no que toca às expectativas das pessoas, sobretudo com aquilo que acham que constitui o meu universo, baseado… somente num filme! E este é um filme de interiores, muito mais fechado, sobre família e relações. Como Desenhar Um Círculo Perfeito é um filme muito denso, difícil de entrar. Depois do Festival do Rio, senti a dificuldade de as pessoas entrarem no filme, em especial por ser demasiado longo. Decidi então cortar a duração e torná-lo mais «penetrável».
B.F. – Em Portugal há muito a ideia de que a humildade está na estagnação e de uma pessoa achar que nunca vai conseguir fazer melhor. A mim dizem-me que nunca vou conseguir fazer melhor do que já fiz…
M.M. – Eu também levei com isso, do género: «Se eu fosse a ti nunca mais fazia outro filme depois do Alice.»
B.F. – Em relação ao segundo álbum, já ouvi pessoas a dizer que vou estar toda a vida a ser comparado a este disco. Tenho 25 anos e se não estiver a melhorar até aos 40, o que é que estou aqui a fazer? Acredito que tenho sempre que melhorar. A cultura pop tem de ser constantemente actualizada. Cada um dos meus futuros trabalhos tem de ter um significado perene.

O B Fachada foi considerado, por parte significativa da imprensa portuguesa, o autor do melhor disco de 2009. O seu ego fica na mesma, não tem medo de ficar um pouco peneirento?
B.F. –
A humildade fora do momento de criação é teatro. O que é que interessa? No fundo, o que é que interessa a opinião que tenho sobre a minha música? Isso só interessa quando eu estiver a fazer o próximo disco e aí é importante a humildade de saber olhar para trás e dizer «isto não está bem ou isto é para melhorar». Mas não sou escuteiro – o meu trabalho tem de ter para mim um significado superior àquele que é absorvido pelos outros.
M.M. – Um criador tem de ser um bocado bicéfalo nesse sentido. Quando começamos a fazer um filme é porque queremos abordar algum tema, mas por outro lado temos de fazer um filme que, como espectadores, queiramos ir ver ao cinema. Seja como for, nunca se pode filmar aquilo que os outros estão à espera.
B.F. – Em Portugal, quer no cinema, quer na música, está tudo por fazer! Ainda ninguém se lembrou de fazer nada. Quando se acha que alguém se esgotou com aquilo que acabou de fazer, fico sempre com a sensação de que as minhas melhores ideias ainda estão todas no baú. Há imensas maneiras de gravar que ainda não experimentei. Há imensas maneiras de filmar que o Marco Martins ainda não experimentou…

Este encontro teve lugar no bar Vila Louize (www.vilaluize.com), em Lisboa

Marco Martins
Tornou-se na nova esperança do cinema português quando apresentou, em 2005, Alice. O filme venceu alguns prémios nos festivais internacionais e ganhou público. Agora, prepara-se para estrear no Festival IndieLisboa Como Desenhar Um Círculo Perfeito, drama com Joana Verona e Beatriz Batarda, com «salto» para os cinemas agendada logo a seguir. A sua faceta como encenador de teatro pode ser ainda apreciada no Teatro D. Maria II na peça Num Dia Igual aos Outros, com Nuno Lopes e Gonçalo Waddington. Paralelamente, é um dos principais realizadores de publicidade do nosso país e a sua produtora, a Ministério dos Filmes, uma referência nesse campo. A provar a sua polivalência nas artes, realizou a meias com Filipa César um filme para a exposição Memograma.

B Fachada
Bernardo Fachada tem 25 anos e é um cantautor para uma nova geração, o mais talentoso representante da fornada da editora Flor Caveira, onde se destacaram ainda Tiago Guillul, Samuel Úria e João Coração. Alguém que vai buscar a tradição e ornamenta-a com folk-pop. Muitos vêm nele o improvável cruzamento entre Zeca Afonso e António Variações.  O seu disco B Fachada, de 2009, foi considerado o melhor do ano por variadas publicações nacionais. Este ano, integrou também o grupo Diabo na Cruz. O videoasta Tiago Pereira captou a sua essência em B Fachada Tradição Oral Contemporânea. Neste momento, este finalista do curso de Literatura, na Universidade Nova, está a preparar um texto para uma peça de teatro ainda no segredo dos deuses.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt