Avós ganham a vida nas ruas de Lisboa

Publicado a
Atualizado a

Tem uma cruz ao peito e, na carteira, ao lado do retrato dos netos, guarda a imagem de Nossa Senhora. Adelaide está à beira de fazer 65 anos e é prostituta. Não tem à vista os estereótipos associados à profissão. Veste como se tivesse acabado de sair da missa, calça uns cândidos sapatinhos rasos, não tem vestígios de maquilhagem. Uns metros mais à frente, Mimi é a imagem da exuberância. Botas cor-de-rosa, calças de ganga sufocando as carnes, lábios vermelhos. Em comum têm pouco mais que o trabalho e a proximidade das idades. Mimi tem 60 anos.

A Praça da Figueira é um posto conhecido de trabalhadoras do sexo com idades maduras. Algumas mantêm o corpo cuidado e usam roupas provocantes. Mas a maioria, não. Adelaide, não. A viuvez ainda se revela no saia-casaco preto, a tristeza que tem sido a sua vida desenrola-se como um novelo logo na primeira conversa. "Vim para a vida aos trinta anos. Era empregada de limpeza, ganhava mal, tinha três filhos, e uma vizinha falou-me nisto. Que se ganhava bem, que não custava assim tanto." E custou? "Oh! Das primeiras vezes fartei-me de chorar. Depois... acostumei-me." E hoje? "Hoje é como comer pão com manteiga."

Mimi balança o corpo opulento de uma perna para a outra. "Putas das botas estão a magoar-me os pés. E estou à rasquinha das costas. É nestas alturas que vejo que a idade pesa!" A sexagenária atira os cabelos louro- -platina para trás e sorri. Não se lastima. "Vim para a vida muito nova. Era cabeleireira mas não tinha com quem deixar a minha filha. Um dia, vinha a andar na rua, sem saber o que fazer e vi uma amiga. Perguntei-lhe o que andava ali a fazer. E ela: 'Ando na vida.'" A amiga apresentou-lhe o chulo e ela, inexperiente, apaixonou-se. Levou "cargas de porrada de ganhar bicho", deixou-o, largou as ruas, voltou. "Reformar-me? Como? Tenho de comer. Ainda não estou reformada! Não tarda estás a mandar--me para um lar, não? Antes morrer!"

Há em Lisboa várias prostitutas com mais de cinquenta anos e até há quem ultrapasse os setenta, ainda em actividade. As técnicas do CAOMIO - Centro de Acolhimento e Orientação da Mulher - Irmãs Oblatas - chamam-lhes "cristalizadas". "É extremamente difícil deixar a prostituição. E, mesmo quando se decide, às vezes já se tem 40 anos. Quem é que dá emprego a alguém com 40 anos cuja única actividade foi a prostituição?"

A primeira pergunta que ocorre é se existem clientes para estas mulheres. Mimi ergue o sobrolho, quase ofendida: "Tenho clientes, pois!" As técnicas das Equipas de Rua das Irmãs Oblatas sabem que é verdade. Sabem que há clientes com gostos para as novas e para as velhas, que nas ruas da capital não falta procura para a diversidade da oferta. "Às vezes estas senhoras até têm mais clientes que as outras. No outro dia, uma delas, que tem setenta e tal anos, levou pancada de umas raparigas novas, precisamente por isso", explica a irmã Fernanda, coordenadora das Equipas de Rua.

Mas não é só o facto de terem bastantes clientes o que pode surpreender. É também a juventude dos que procuram estas senhoras de ida- de. Mimi explica: "Quase todos os que me procuram são franguinhos. Os mais novinhos gostam muito aqui da mamã!" O psiquiatra Francisco Allen Gomes não se surpreende: "Talvez se sintam mais à vontade, mais compreendidos, menos pressionados a ter grandes performances. Talvez se sintam mais seguros." O mesmo diz a psicóloga Gabriela Moita.

A clientela jovem é outro dos escassos denominadores comuns entre Adelaide e Mimi. O mesmo não se pode dizer da atitude de cada uma em relação à família. A primeira nunca contou aos filhos. "Um deles está na universidade privada. Não podia dizer-lhe que a mãe anda na má vida para lhe pagar os estudos. As únicas pessoas que sabem são os meus irmãos. Mas até a esses me arrependo de ter contado. Um dia, numa discussão, mandaram-me à cara que era uma puta velha! Depois, um dia precisaram de mim e eu respondi: Dinheiro de puta não serve para gente séria!" Mimi contou tudo aos filhos: "Um dia sentei-os todos à mesa e disse: 'Se não sabiam já, ficam a saber agora. A mãe é puta.' Fartei-me de chorar. Mas eles compreenderam. E hoje o meu mais novo vem cá sempre lanchar comigo."

Mimi pede desculpa, mas está na hora de ir para casa. São oito da noite, é cedo, mas o namorado faz anos. "Tenho de ir já porque moro longe. Ainda tenho de apanhar o metro, depois o comboio e ainda mais uma camioneta! E ainda tenho de fazer o Euromilhões!" Se ganhasse a sorte grande, deixava esta vida. "É óbvio!" Mas se só recebesse uma porção, concretizava outro sonho: "Abria uma casa de meninas novas e ficava só a mandar. Estou cansada. Mas pronto. Amanhã há mais."

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt