Autómatos autónomos

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Volvidos 22 anos de existência da Abraço (5 de junho de 2014) somos confrontados com uma sociedade cada vez mais preocupada com a sua sobrevivência em deterioramento da vivência. Apelamos a conceitos da autonomia, onde metricamente somos analisados não pelo que somos, mas sim pelo que fazemos. Uma sociedade contemporânea, evoluída, que outrora sentiu, outrora pensou e hoje em dia age. Age freneticamente, porque quando estou em ação não penso, quando estou a fazer algo, não sinto. Autómatos, verdadeiros robots que "desperdiçam" ou limitam a sua vida em prol de uma vida unidimensional, mas com a agenda semanal repleta.

Somos altamente competentes, voluntariamente competentes, sem necessidade do olhar externo, pois o empreendedorismo, o coaching pessoal e outros conceitos oriundos das empresas foram absorvidos para as nossas vidas pessoais. Que vida pessoal?!

Sofremos da doença da autonomia sem perceber que, claramente confundimos os conceitos. O movimento pelo sufrágio não referia nada de não sentirmos, de sermos emocionalmente independentes, até porque, caso não saibamos, já o somos! Não há ninguém que possa sentir por mim, é humanamente impossível.

Somos a geração do evitamento da dor, até porque isso não se coaduna com o sucesso, com o mundo das possibilidades infinitas, não é verdade? Encontrei uma definição online (sim, porque até destas máquinas hoje em dia dependemos) sobre o conceito de autonomia - tempo que pode funcionar um aparelho ou equipamento sem necessidade de recarregamento de energia. Estabeleci o paralelo com as nossas vidas e como me faz sentido que para eu ser autónomo terei de, a uma dada altura, ser dependente e que durante esse período onde eu e o outro interdependemos, poderei ser eu, sem confundir ou fundir-me com o outro.

Autónomo, é assumir que sou deliberadamente dependente, sem que isso comprometa a integridade do quem-eu-sou.

Independência! Outro conceito que todos nós adoramos nos dias de hoje, educamos as crianças segundo as máximas do sucesso, da independência, da autonomia e do constante estado eufórico. Não me entendam mal, eu também sou a favor destes conceitos. Leu bem: "também", não sou "só" a favor deles.

Gostaria que tornássemos mais consciente a função das emoções e como muitas delas são reparadoras e conciliadoras. Todas elas, sem exceção, mesmo aquelas que repudiamos mais, exercem algum tipo de função em nós. Em vez de afugentarmos e fugirmos das nossas emoções, combatemo-las com horas infindáveis no trabalho ou no ginásio, onde levamos o nosso corpo à exaustão para nos vencermos pelo cansaço. Talvez, mas se calhar só talvez, possamos senti-las por breves instantes e, quem sabe, tornar consciente que é na minha tristeza que eu reconheço a minha alegria. Se substituirmos os "ou" por "e", os "mas" por "também", talvez consigamos perceber que enquanto seres humanos, foi-nos dada a capacidade de sentir, pensar e agir e que os sentimentos são a força motriz das nossas ações, guiadas pelas nossos pensamentos.

Neste movimento constante entre a ação impulsionada pela responsividade ao mundo exterior eu torno-me permeável, perco parte da minha entidade e, principalmente, perco a capacidade de conetar com o meu mundo interior, e de atender ao meu mundo emocional.

De um modo quase inevitável levanta-se-me a questão se este modo de estar na vida conduz ao atual panorama sociopolítico. Será que a ausência de valores apela à nossa necessidade de limites impostos pelo exterior e à emergência de uma condicionante política que nos circunscreva na nossa existência?

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