São cada vez mais as histórias que procuram "o outro lado". Histórias que revelam as personagens esquecidas na leitura oficial da realidade. Ainda há poucas semanas aqui se escreveu sobre o novo Estrangulador de Boston, estreado no Disney+, que retrata o processo de investigação de duas jornalistas nunca mencionadas no filme homónimo de 1968 (este só protagonizado por homens), ambos baseados no mesmo caso verídico. Agora chega também ao serviço Disney+ o lado feminino do universo da máfia, até hoje tradicionalmente representado em severos códigos masculinos, com as devidas manifestações de força bruta. As Boas Mães dá-nos então outra fotografia: é a história de três mulheres, figuras maternas, que desafiaram o seu próprio clã, a "Ndrangheta, com a ajuda de uma procuradora, tentando derrubar por dentro os alicerces dessa organização criminal na Calábria. Um jogo perigoso, uma narrativa diferente, que parte uma vez mais de um caso verídico..A série inspira-se no livro com o mesmo título do jornalista Alex Perry, e ao longo de seis episódios desenvolve as suas linhas dramáticas à volta de Lea Garofalo e Denise (mãe e filha), Concetta Cacciola e Giuseppina Pesce, todas personagens reais, com nomes reais, que à sua maneira lutaram contra a máfia calabresa colaborando com as autoridades. "Esta é uma história que importa muito contar", começou por dizer Elisa Amoruso, uma das realizadoras de The Good Mothers, na conferência de imprensa na Berlinale a que o DN acedeu de modo remoto. "Estas são mulheres que não tiveram escolha. Ficaram grávidas muito cedo, aos 15 ou 16 anos, e estavam numa posição muito difícil: tinham de decidir entre ficar ou partir e quebrar as regras das famílias", acrescentou..A lógica familiar foi, aliás, o que atraiu a atenção do outro realizador da série, o britânico Julian Jarrold: "Eu não sabia nada sobre a "Ndrangheta. O facto de eles terem estruturas sociais e familiares tão arcaicas, e a questão de estas mulheres viveram vidas tão opressivas, algumas encontrando coragem para fugir a esse destino... Tudo isto era tão vívido e dramático que nos fez sentir que era possível captá-lo, com autenticidade, numa série televisiva." Mas está também em causa uma mudança de paradigma, que Jarrold reconhece no mercado audiovisual: "A seleção de histórias mudou ao longo dos anos, e olhando em particular para os filmes e séries sobre a máfia, estes foram quase sempre feitos na perspetiva masculina, enquanto objetos que muitas vezes glorificam a violência. Portanto, o que trazemos é uma ótica fresca, uma forma diferente de olhar para a mesma realidade, sendo que a violência, apesar de estar ao virar da esquina, surge sobretudo fora de campo, visível no plano das consequências.".Os acontecimentos retratados em As Boas Mães remontam a 2010, e embora traduzam uma essencial perspetiva feminina não deixam de se firmar na ação dos homens implicados. "Para elevar as mulheres, também tínhamos de mostrar homens autênticos neste cenário, e não apenas estereótipos da máfia. Acho que fizemos isso: os homens aqui são vistos como seres que também estão a perder algo, e que não vivem a não ser naquele papel", sublinhou o argumentista Stephen Butchard, responsável pela adaptação, que fez ainda referência ao simbolismo do título enquanto ideia de que "a força destas mulheres vem dos seus filhos. Elas não fazem o que fazem para proveito próprio.".Enfim, na opinião da atriz Valentina Bellè, que interpreta Giuseppina Pesce, o raciocínio não será assim tão simples: "O que é que faz de alguém uma boa mãe? É a forma como se relaciona com os filhos, certamente, mas há mais para além disso. Tem que ver com uma consciência de si própria, a luta pela liberdade pessoal, antes de tudo o resto.".É também por aí que se entende o gesto de Lea Garofalo, a primeira mulher a dar um passo resoluto no sentido da emancipação, e cujo desaparecimento marca o início da série. Uma mãe que estava a colaborar com a justiça italiana, testemunhando contra o marido, e que orienta a filha Denise numa luta silenciosa, sem que esta se dê logo conta do seu legado. "Lea Garofalo fez algo de extraordinário. Ela cresceu na pobreza, com este código de silêncio - omertà -, e ousou virar-se contra a "Ndrangheta, contra a sua própria família, em prol da filha, encontrando uma maneira de lhe transmitir uma noção de liberdade e coragem. E a verdade é que a filha, depois, testemunhou contra o pai e aqueles que mataram a sua mãe. Portanto, Lea deu-lhe essa força a priori", resumiu Micaela Ramazzotti, a atriz no papel de Lea..Esta passagem de testemunho faz com que, no fundo, Denise (Gaia Girace, a Lila da série A Amiga Genial) se torne o coração dos primeiros episódios. É ela a jovem que fica sozinha num mundo ameaçador, mas que encontra a sua forma de fazer oposição ao pai e de mostrar que o medo não tem a última palavra naquela existência frágil a que está submetida. Não se trata, porém, de um cenário totalmente obscuro; há uma réstia de amor a suster o edifício familiar. Como referiu a realizadora Elisa Amoruso, "o elemento trágico para estas mulheres é que o amor e a violência estão muitas vezes concentrados na mesma pessoa. E isso também passa de mães para filhas." Num certo sentido, "pode dizer-se que elas se tornaram mães uma segunda vez quando decidiram quebrar as regras. Porque na altura em que foram mães eram tão novas que não tinham experiência nem consciência para o fazer. Aí está o verdadeiro poder do amor.".Digno de nota é também o facto de As Boas Mães, coprodução entre Reino Unido e Itália, falada em italiano, ter vencido o prémio inaugural da Berlinale Series para melhor drama de TV. As séries vão-se afirmando até nos festivais de cinema....dnot@dn.pt