Pode um filme de desenhos animados estar mais próximo da realidade do que um outro com personagens "reais"? À primeira vista, certamente que não, mas Ratatui, o filme da Disney/Pixar que estreou esta semana nas salas portuguesas, é um bom exemplo de como certas questões podem ser bem retratadas no reino da fantasia. Para tal, contribuiu seguramente o colaboração do chefe norte-americano Thomas Keller, consultor do filme e um dos profissionais mais conceituados do mundo. Vamos ver algumas dessas questões..VOCAÇÃO. A estrela do filme, o rato Remy, consegue, desde cedo, não só identificar os cheiros e sabores dos alimentos, mas também perceber quais as melhores conjugações entre eles. No mundo real é assim ? Muitas vezes sim, mas também há vocações tardias (Ferran Adrià, é um dos melhores exemplos) de cozinheiros que se distinguem sem ter nenhuma "sensibilidade" especial, que substituem por muito treino dos sentidos. .ÍDOLOS. Remy tem no chefe Auguste Gusteau, que conhece de programas de televisão e pelo livro de cozinha, o seu ídolo inspirador, que lhe ensina não só receitas, mas também uma "atitude" em relação à cozinha. A verdade é que qualquer jovem cozinheiro tem que ter ídolos na profissão. Só mais tarde, se tiver talento e sorte, poderá afirmar a "sua" cozinha. Desconhecem-se casos de grandes cozinheiros de geração espontânea, que não reconhecem influências..PROFISSÃO DURA. Desde que chega ao restaurante parisiense, Remy percebe o regime quase militar em que funciona a "brigada" e como os chefes e cozinheiros são ciosos dos seus lugares hierárquicos. Em maior ou menor grau, é essa a realidade dos grandes restaurantes, sobretudo durante o momento crítico de servir refeições..A BRIGADA. Os membros da brigada são provenientes das mais diversas origens, algumas até criminosas. É uma realidade algo ultrapassada, já que, hoje, as equipas de restaurantes de topo são na sua grande maioria constituídas por gente vinda das escolas de hotelaria, muitos deles estagiários. A presença de uma única mulher na equipa revela bem que, embora já não seja como há uns anos, o mundo da "alta cozinha" ainda é predominantemente masculino..CRIATIVIDADE. A personagem Colette, quando a dupla Remy/Linguini tenta alterar uma receita (ainda que fracassada) de Gusteau, explica que os membros da brigada têm apenas que reproduzir receitas. A criatividade é um exclusivo do chefe e, quando muito, de algum auxiliar de confiança. Uma grande verdade, nem sempre entendida por jovens ambiciosos e impacientes..PRATOS. O aspecto dos pratos é muito semelhante ao dos servidos em restaurantes de topo. O único problema são os nomes. Talvez devido ao público infantil, são demasiado simplificados: "a sopa", "o foie gras", "o especial". Nada dizem sobre os ingredientes que os integram, o que é muito difícil de acontecer neste tipo de restaurantes..NEGÓCIO. O "vilão" chefe Skinner quer abrir negócios paralelos, usurpando o prestígio do nome Gusteau, com comida congelada e restaurantes fast food. A verdade é que quase todos os grandes chefes da actualidade têm segundos restaurantes mais baratos, até de " fast food de qualidade", e criam produtos para a grande distribuição. Um restaurante de topo raramente dá lucro suficiente. Saber manter a dignidade quando se envereda por esses negócios, é uma das grandes questões que actualmente se coloca aos chefes..CRÍTICA.(não leia se ainda não viu o filme). A figura do crítico Anton Ego justifica-se pelo "dramaticidade" da narrativa, mas nenhum profissional se anuncia de véspera num restaurante, pedindo para o chefe o deslumbrar com as suas criações. Os críticos influentes e credíveis são discretos, alguns até conseguem ser anónimos, e gostam de se pôr na pele do cliente " normal"..MEMÓRIA (de novo só para quem viu o filme, para não perder a surpresa). Anton Ego rende-se à cozinha de Remy quando ele lhe serve uma versão moderna e sofisticada da tradicional e rústica ratatouille (prato francês que deu o nome original ao filme) que o transporta para a sua infância, à memória das sensações que viveu quando a mãe lhe serviu prato semelhante. De facto, por vanguardista que seja a cozinha, é necessário reconhecer cheiros e sabores. Muitos defendem que a cozinha que "emociona" é a que nos leva para os sabores da infância e não é por acaso que a partir daí o frio e arrogante crítico se humaniza..HIGIENE. Ratos nas cozinhas, mesmo caseiras, nem pensar. Tolerá-los, mesmo que lavem as patinhas, só mesmo no mundo Disney...|