A exposição de fotografias de Mariana Castro na Casa da Cultura de Setúbal (até 2 de julho) tem um título francês: Ne touche pas. Ao deparar com este imperativo -- "não toques", talvez "não tocar" --, não pude deixar de pensar num dos filmes menos conhecidos, e também mais ambiguamente românticos, de Alain Resnais: Pas sur la bouche (2003), à letra "Na boca não" (entre nós, em tradução literal do título inglês, chamaram-lhe Nos Lábios Não)..Lembrei-me também de You Can Look (But You Better Not Touch), a canção de Bruce Springsteen que surge no alinhamento da sua obra-prima The River (1980). Primeiro perante os objectos expostos numa loja, depois face à imagem televisiva de uma rapariga ("a olhar directamente para os meus olhos"), por fim na sequência de um encontro com uma mulher (de nome "Dirty Annie"...), ele depara-se com a mesma interdição, expressa no título: "Podes olhar (mas é melhor não tocares)"..E pensei ainda no western surreal de Marco Ferreri Touche pas la Femme Blanche (1974), lançado entre nós com um título, felizmente, em tradução literal (Não Toques na Mulher Branca). A inacessibilidade da "mulher branca" (Catherine Deneuve) é um dos sinais de uma narrativa totalmente liberta de qualquer naturalismo piedoso -- o deserto do velho Oeste americano foi filmado na zona de Les Halles, em Paris, num momento de espectacular reconversão urbana -- em que a parábola sobre a repressão dos índios arrasta um efeito simbólico cuja acuidade política não se perdeu..Tocar e não tocar. E que dizer de Touch of Evil (1958), de Orson Welles, encenando, em tom de narrativa noir, esse "toque do mal", anónimo e intimista, que o título nomeia (bem diferente da equívoca versão portuguesa: A Sede do Mal)? Sem esquecer, claro, o magnífico, quase sempre ignorado, The Touch (1971), primeiro filme em língua inglesa de Ingmar Bergman, encenando o "toque" trágico das personagens de Elliott Gould e Bibi Andersson -- em Portugal, o tradutor apenas detectou a situação de adultério e optou por lhe chamar O Amante (ainda assim, um pouco melhor que a solução brasileira, A Hora do Amor)..Nada disto serve de explicação, muito menos de caução, das belíssimas imagens de Mariana Castro. Trata-se apenas de lembrar algo de ancestral: nas histórias das imagens (fotográficas e cinematográficas), há uma derivação perversa em que assistimos a um infinito teatro visual protagonizado por duas entidades cúmplices: a arte de dar a ver e o fantasma que ela transporta, isto é, o desejo de tocar. E porque somos humanos (e Sigmund Freud nos ensinou a conter o nosso romantismo), não esqueçamos a outra face desta aventura. A saber: a interdição de satisfazer esse desejo..Nas fotografias de Mariana Castro proliferam mãos. Mãos humanas e mãos de estátuas. Mãos que tocam, ou se preparam para tocar, objectos e animais. E alguns elementos naturais como o ramo de uma flor com espinhos (roseira?), parecendo repetir a pose de uma mão e um braço humano -- ou é esta mão e este braço que reencenam a pose da planta? Há mesmo uma estátua de um tronco humano, masculino, sem cabeça e sem braços, que ainda assim não apaga os desejos primordiais do afecto humano: ver e querer ver, tocar ou desejar tocar..O lugar-comum dirá que são imagens "poéticas". Mas importa resistir a tal instrumentalização da poesia. Até porque nestes tempos tristes de imagens sem pensamento e sem desejo, supostamente detentoras de um saber automático e incontestável, aquilo que vemos nestas fotografias é também a exigência de olhar para o mundo à nossa volta sem esmagar a pluralidade das formas e suas significações.."Não tocar" significa, aqui, recuar um pouco e devolver ao acto de ver -- e criar imagens -- o gosto pela convivência com aquilo que resiste a qualquer "explicação" mediática. Questão política, sem dúvida, porque envolve o modo como convivemos com as representações do nosso frágil viver, sobretudo no território televisivo. Mariana Castro celebra, assim, aquilo que a agitação mediática quer destruir: o pudor.. Jornalista