As guerras que se travam no Afeganistão há quatro décadas

O país vive em estado de guerra contínua desde dezembro de 1979, iniciada com a invasão soviética para apoiar o governo comunista de Nur Mohammad Taraki, que chegara ao poder através de um golpe de Estado. Desde então, não voltou a haver um dia de paz. No Afeganistão, não há uma guerra - tem havido e continuam a haver várias.
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Golpe de Estado e invasão soviética

O Partido Democrático Popular (PDP, comunista) de Nur Mohammad Taraki chega ao poder através de um golpe de Estado em 1978, em que foi morto o presidente Mohammad Daoud Khan, mais 17 membros da sua família, e levou à prisão de muitos elementos das elites tradicionais e religiosas. A aplicação de uma agenda socialista provocará a revolta de parte da sociedade afegã e o aparecimento dos mujahedines. A resistência ao regime do PDP e as violentas lutas internas entre as duas principais fações do partido, Khalq e Parcham, está na origem da invasão e ocupação soviéticas em dezembro de 1979. Fica aberto o caminho para a generalização e intensificação do conflito no quadro da Guerra Fria. Estados Unidos, Reino Unido e Arábia Saudita vão apoiar os mujahedines numa estratégia de contenção e enfraquecimento da União Soviética. As tropas soviéticas acabarão por retirar em 1982, mas o governo que deixam em Cabul, dirigido por Mohammad Najibullah do PDP, sobreviverá até 1992, quando os mujahedines conquistam a capital. Começa novo capítulo da guerra.

Da conquista de Cabul pelos talibãs à invasão de 2001

A queda do governo de Najibullah não trouxe a paz ao Afeganistão. Pelo contrário, a profunda divisão entre os diferentes grupos, acentuadas por clivagens étnicas, cria um clima generalizado de caos e violência, que vai contribuir para o aparecimento dos talibãs, grupo fundado pelo mullah Mohammad Omar. Inicialmente apoiados pela generalidade da população por atuarem de forma distinta das restantes milícias, os talibãs propõem-se criar um Estado islâmico no país e avançam sobre Cabul, defendida por, entre outros, um carismático líder dos mujahedines, Ahmed Shah Massoud, que os dirige desde a época da ocupação soviética. O conflito, nesta fase, prolonga--se até 1996, quando cai Cabul. O regime talibã é apenas reconhecido pela Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Paquistão. O Afeganistão torna-se a base da Al-Qaeda. Após o 11 de Setembro de 2001, com a invasão dos EUA e seus aliados, tem início um outro conflito que integra o da guerra civil: o combate da coligação internacional contra os talibãs e a Al-Qaeda.

Suspeitas e competição entre grupos étnicos

Em paralelo com os conflitos armados, e reflexo deste, é uma muito mais antiga guerra, a étnica. Conflito que opõe o grupo étnico dominante, os pastunes, e restantes etnias, como hazaras, usbeques e tajiques, resultado da desproporção entre o peso demográfico daqueles (menos de 50% da população) e sua influência no poder político, praticamente hegemónica. A tensão resultante ajuda a explicar mudanças de alianças entre as milícias e partidos representativos das restantes etnias numa tentativa de travar a influência dos pastunes. Ou seja, a paz não é possível sem uma mais equilibrada partilha do poder. Exemplo recente viveu-se no rescaldo das presidenciais de 2014, quando o vencedor, o pastune Ashraf Ghani, teve de acei-tar um acordo com o tajique Abdullah Abdullah, ficando este com a chefia do governo de unidade e enfraquecendo, na prática, o cargo da presidência, onde estava concentrado o essencial do poder político desde 2004. O recente acordo com Gulbuddin Hekmatyar, chefe de uma fação islamita e que pertence à maior federação de tribos pastunes, pretende retirar este movimento da frente antigovernamental. Mas o acordo entre Hekmatyar, que dirige o Hezb-i-Islami, assinado em setembro com o presidente Ghani e o primeiro-ministro Abdullah, por outro lado, procura reforçar a componente pastune da coligação no poder em Cabul, resultante do acordo de 2014. As negociações com os talibãs são outro aspeto da tentativa de gerir influências entre as diferentes etnias e seus subgrupos. O grupo islamita tem raízes num dos principais subgrupos dos pastunes, os ghilzai (a que pertence Hekmatyar), historicamente adversário do outro principal subgrupo pastune, os durrani.

O choque geoestratégico entre Paquistão e Índia

Islamabad sempre olhou o Afeganistão como espaço que lhe daria profundidade estratégica no conflito que mantém desde a independência com a Índia. Profundidade estratégica que vai para além de implicações militares; comporta uma dimensão económica e de política e interna e externa. Uma forte influência no Afeganistão permite ao Paquistão travar as relações da Índia com os países da Ásia Central e bloquear, até certo ponto, o desenvolvimento de relações político-económicas entre Cabul e Nova Deli. Uma estratégia em risco desde 2011 quando foi assinado um acordo, durante a presidência de Hamid Karzai, para o treino das forças de segurança afegãs por militares indianos. Karzai acusou várias vezes o Paquistão de procurar desestabilizar o seu país. As relações Cabul-Nova Deli continuam a desenvolver-se. Em junho último, realizou-se um encontro de alto nível entre o primeiro-ministro Narendra Modi e o presidente Ghani, onde foi decidido o reforço das relações bilaterais, inclusive no capítulo da segurança e em "cooperação com os EUA", sublinhou o governante indiano. Os EUA acusam desde há muito o Paquistão de não fazer o suficiente para neutralizar as bases talibãs no seu território. Um fator essencial - mas não único - para se chegar à paz no Afeganistão.

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