As férias dos famosos
Gloria Swanson na Praia das MaçãsNas duas ou três vezes que passou férias na Praia das Maçãs, Gloria Josephine Mae Svenson, ou Gloria Swanson (1899-1983) para os anais do cinema, dispensou as pulseiras e colares Cartier. Quando descia ao areal, vinda de um longo passeio a pé - ou de caleche, em dias agrestes - entre as falésias das Azenhas do Mar e a Praia Pequena, ninguém podia supor que aquela senhora discreta fosse Norma Desmond, a personagem imortal de O Crepúsculo dos Deuses, filme de Billy Wilder (1950) que protagonizara ao lado de William Holden e Erich von Stroheim e lhe devolvera a aura dos tempos da prostituta Sadie Thompson (A Sedução do Pecado, 1928) e da estenógrafa de The Trespasser (1929).Não havia outro lugar no mundo onde a actriz gostasse tanto de veranear, longe das praias postiças da Califórnia e alheada da fastidiosa América. Diz-se que a primeira vinda a Portugal se deveu ao desgosto de ter perdido o Óscar para Judy Holliday. Gloria não perdoou a Hollywood a ingratidão, e desde então as suas aparições rarearam limitando-se a alguns peplum italianos e espectáculos na Broadway. Nos anos 1920, fora a rainha do cinema mudo - entre 1915 e 1927, participou em meia centena de títulos como Male and Female (1919), Zaza (1923) e Madame Sans-Gêne (1925) - e por muda foi tomada entre os sintrenses. Entre os locais não há memória da sua voz cavada, ou sequer do olhar sobranceiro, do nariz afilado e da farta cabeleira. Hoje, ninguém sabe que a Praia das Maçãs era frequentada por uma das derradeiras divas. Gloria caminhava discreta pelas arribas para cá e para lá, ladeada pelo sobrinho, oculta por lenços violeta e óculos negros de grandes aros. Dispensava o social e as abordagens de algum fã mais atento. Não dispensava o blush. À tarde, preferia os toldos e as esplanadas às festas dos nobres da vila. Gostava de amêijoas e de tremoços. Apreciava a humidade e a bruma, o eléctrico, os pescadores empoleirados nas rochas e os berros das gaivotas. Lia Eça, Byron e Rimbaud. Escrevia poemas a lápis de cor que rasgava logo a seguir ou pegava-lhes fogo.Consta que terá passado uma noite inteira de insónia na varanda a contemplar o oceano e a beber moscatel. Gloria chegou a Nova Iorque doente e as praias de Sintra foram as suas últimas férias.Almada Negreiros em ParisSeria mais correcto dizer José de Almada Negreiros (1893-1970), pintor, poeta, contista, novelista, coreógrafo, atleta, bailarino viveu no mundo, de Lisboa a Paris. Provocador compulsivo, futurista, surrealista, o artista foi sempre muito senhor da sua vontade e viveu conforme a personagem do seu conto O Cágado. Na vida de Almada, a viagem era sobretudo um modo de preservar a meninice, de continuar a ver o mundo com os olhos de uma criança. Tanto lhe fazia saltitar de país em país como deixar-se estar no atelier, a criar metáforas de quadrados azuis, alegorias de saltimbancos e engomadeiras. Da Roça da Saudade, em São Tomé, onde nasceu a 7 de Abril de 1893, até aos rondéis do Alentejo, dos arrondissements de Paris ao Chiado de Fernando Pessoa (e à colaboração na revista Orpheu, outra das suas grandes viagens), são variadíssimos os trânsitos de Almada.De Paris, haverá uma primeira visita breve ao pai, que servirá apenas para demonstrar que os dois pouco mais não são que um par de estranhos unidos pelo sangue. Regressado a Lisboa, receberá, contudo, a influência de estrangeirados parisienses, como Amadeo de Souza-Cardozo, Santa-Rita Pintor e Mário de Sá-Carneiro, fora o já citado Pessoa. Nos anos 1920, Almada parte outra vez para Paris, onde viverá perto de dois anos, altura em que começa a assinar Almada com o d alongado. Na capital francesa trabalha como empregado de mesa e bailarino de cabaret, locais a que se afeiçoara desde o tempo do Bristol Club do mecenas Mário de Freitas Ribeiro. Dessa estada resultariam Histoire du Portugal par Coeur (História de Portugal de Cor) e Os Ingleses Fumam Cachimbo, duas obras sobrevalorizadas pelo próprio. Regressa a Lisboa por culpa das dificuldades económicas e não da necessidade da Pátria para criar. «A arte não vive sem a Pátria do artista, aprendi eu isto para sempre no estrangeiro», deixou escrito.Brigitte Bardot no RioQuando Brigitte Bardot (hoje com 76 anos) chegou a Armação dos Búzios, no Verão de 1964, nenhum fluminense dava um cruzeiro pelo lugarejo desterrado no litoral do município do Rio de Janeiro. Uma língua quilométrica de praias rochosas entregue às cracas, lapas e mexilhões sem crédito nas rotas turísticas. BB era já uma actriz famosa pelos seus seios e pernas mostrados generosamente no filme E Deus Criou a Mulher, do ex-marido Roger Vadim, e a chegada a Búzios teve mais impacte do que a descoberta de Cabral. O impulsionador da viagem foi Bob Zaguri, um marroquino emigrante no Brasil. Tudo o que Bardot precisava para descomprimir da seriedade francesa e do assédio dos paparazzi da imprensa cor-de-rosa.Conta-se que fizeram o caminho a pé como vulgares mochileiros, dormindo ao deus-dará, como sugerem os mandamentos dos viajantes crentes nos acasos do destino. E quis o destino que Búzios fosse a terra descoberta, o destino final do par afadigado por duas semanas de marcha. Na altura, o lugarejo não tinha mais de mil almas, a maioria pescadores e hortelões que torciam pelo Botafogo e para quem Deus era Garrincha, o anjo de pernas tortas. Bob e Bardot dormiram na orla da praia ao relento, assaram peixe em varapaus, leram Machado de Assis, beberam rios de cachaça e juraram amor eterno ao som de Eu Sei Que Vou te Amar, de Vinicius e Jobim.Ao pôr do Sol, Brigitte cantava músicas de Piaf e lia poemas de Éluard. Bob retribuía com as memórias de Paul Bowles em Marrocos e poemas místicos da irmandade sufi. Foi sobretudo um Verão cultural. No ano seguinte e no outro e no outro, onde havia apenas praias e prainhas, palafitas de bambu e redes, pescadores tisnados e xaveirinhos, saguins e pererecas, foram nascendo pousadas e hotéis como cogumelos. No censo de 2003, havia 472 pousadas licenciadas (excluídas as clandestinas), o maior rol por metro quadrado do Brasil de restaurantes hip e lojas de marca, o número mais vasto de vendedores de camarão da costa brasileira, a maior concentração de cadeiras de plástico nos areais, a par de um negócio florescente de materiais de construção civil. Em homenagem à passagem da actriz, a Prefeitura criou a Orla Bardot na Praia dos Ossos e ergueu ali uma estátua em tamanho natural de seios e coxas (os pontos fortes de Brigitte, além da voz roufenha), feitos a partir de moldes de gesso.Boris Vian em Saint-Jean-de-MontsAté aos 9 anos, os verões do pequeno Boris Vian (1920-1959) eram passados no solar de férias em Capbreton, polvilhado pelos ares da Bretanha, as lições de Álgebra da preceptora particular, as leituras de Racine, Molière e Baudelaire e os mamilos das camponesas. As rotinas de menino rico mantiveram-se até ao crash de 1929, quando o pai, Paul Vian, uma espécie de banqueiro anarquista, ateu e liberal, ficou reduzido ao bom-nome e à hipoteca do palacete de Ville d"Avrai. A uma década de fausto burguês infanto-juvenil seguir-se-ão três de penúria adulta e serão escassas as ausências prolongadas de Paris, excepto uma, vivida em Saint-Jean-de-Monts, na Vendée, de 20 de Agosto a 3 de Setembro de 1946 - que deu lugar a uma das mais prodigiosas mistificações da história da literatura. Vian, então com 26 anos, era já um agitador de monta, conhecido pelo cognome de Príncipe de Saint-German des Prés e famoso pelos seus espectáculos de cabaret, dramaturgias e encenações delirantes e, sobretudo, pelas suas festas-surpresa, que lhe deram a dupla notoriedade de autor e femeeiro - sobretudo quando a literatura ainda lhe era madrasta. Protegido de Sartre e Raymond Queneau, foram estes que convenceram o editor Gallimard a propor A Espuma dos Dias para um prémio do qual se viu preterido por um romance de um obscuro abade. Após um encontro com Jean d"Halluin, o quase falido editor da casa Le Scorpio, Vian propôs-lhe escrever um best-seller em 15 dias e refugiou-se na região do Loire. Nasceu então J"irai Cracher sur vos Tombes (Irei Cuspir-vos no Túmulo), assinado por um tal Vernon Sullivan, um negro norte-americano perseguido pelas autoridades e a braços com sucessivas recusas das editoras do seu país. Trata-se de um policial noir, pioneiro do género, do qual Vian se apresenta somente como tradutor esforçado. Embora tudo indique a autoria, a crítica verga-se ao génio cru e à legítima revolta daquele negro em luta contra o racismo no seu país. O semanário Samedi-Soir de 7 de Dezembro de 1946 chega a compará-lo a Faulkner, Cain e Miller. Durante o resto do ano, será um fartote de riso para Vian, d"Halluin e os poucos a par daquele pândego pseudónimo de Verão. Simone Beauvoir (e Sartre) em AtenasAs primeiras férias de Simone Beauvoir (1908-1986) longe dos pais e do bairro parisiense de Montparnasse são relatadas com grande pompa em Idade da Razão e nas Memórias de Uma Menina Bem-Comportada. A Hélade (a antiga Grécia) é o destino eleito na ronda histórica europeia e adequa-se à altivez e mania da superioridade da sua educação aristocrática. Neta de banqueiro falido (e impostor), filha de pai inclinado à direita e igualmente falido (e também impostor), Beauvoir nunca deixou de cultivar o sentido elitista e hedonista da vida, mesmo no esplendor das suas simpatias pró-soviéticas.Nos socalcos da Acrópole, Simone imagina o mundo perfeito, salvo dos seus defeitos pela literatura e o pensamento. Um mundo livre da moral burguesa girando à volta do jovem Jean-Paul Sartre (1905-1980), companheiro do périplo grego, do resto da vida e espelho da sua própria grandeza. Ela tem 21 anos, ele 24, e acabavam de se conhecer no exame final de Filosofia - ela segunda classificada, ele primeiro. Na Grécia, Sartre e Beauvoir debatem as falências da sociedade, o modelo existencialista e as virtudes do vinho. Nas tavernas de Psirri, antigo bairro fabril, terá nascido ainda Castor, a alcunha que lhe vem da diligência em trabalhar e construir.Beauvoir é já a mulher emancipada e liberta (as palavras da moda) e a autora de O Segundo Sexo. Uma maníaca da liberdade, despida de espartilhos, combinações pelos tornozelos ou saias de abafo que rapa os pêlos e o velocino púbico, usa biquínis estreitos, faz topless, mastiga pastilhas estimulantes e pratica sexo onde se proporcione, desde as arcadas da Acrópole aos areais do Peloponeso. O pequeno Sartre, por seu turno, usa tanga, pisca os olhos estrábicos às estrangeiras, a quem chama «belas aves de arribação», e prefere a cocaína, as anfetaminas e a mescalina aos cogumelos. Dormem em quartos contíguos nos hotéis e têm os primeiros «amantes contingentes». Depois de testemunharem o saque inglês do Parthenón, rumam às ilhas de Hydra e, muito mais longe, Creta, onde andarão de burro e farão nudismo. Na altura, Sartre ainda come marisco sem temer ser perseguido por lavagantes e é já um Don Juan que procura amigar-se com tudo o que mexa - de inglesas ricas a camponesas de buço viçoso. Os dois são o centro das atenções, o par perfeito de megalómanos narcisistas que falam ininterruptamente dos feitos vindouros, ora sentados nas esplanadas, ora deitados à fresca na baixa-mar. Nesse Verão atabafante de 1929, o casal ficará célebre entre as hordas gregas pelos relatos escabrosos da cultura do amor livre.Joseph Conrad em KentEmbora Joseph Conrad (1857-1924) tenha sido imortalizado pela imagem de um incorrigível nómada embarcadiço, o escritor e marinheiro viveu os seus últimos trinta anos em terra. Passou grande parte desse tempo a escrever (a custo), enfiado num estúdio forrado de livros, cartas de marear e uma colecção de astrolábios, nos fundos do jardim da casa em Kent, que partilhava com a mulher, Jessie George Conrad, e, até rebentar a Primeira Guerra Mundial, o filho Borys.Desde que abandonou os barcos e uma existência aventurosa, Conrad nunca mais vestira a casaca de botões dourados e o boné azul-cobalto. Recolhera-se a uma vida simples, contentada pela visita de amigos com quem tinha longas conversas. Da vida de Conrad em terra firme sabe-se que usava apenas um roupão de riscas amarelo desbotado e que fumava sem parar, ou pelo menos acendia cigarros uns atrás dos outros deixando-os em qualquer sítio de forma descuidada. Jessie resignava-se a quase todos os defeitos do marido, sobretudo a irritação permanente e a ansiedade, mas vivia em estado de alerta com as suas distracções de fumador que por várias vezes puseram a casa em perigo.As fúrias de Conrad deviam-se a factos insólitos como por exemplo coabitar com a mulher e os filhos, umas vezes criaturas diabólicas, outras seres angelicais e fontes de inspiração. No entanto, sempre que acabava um livro fazia questão de oferecer à mulher presentes caros e encher a casa de flores. Podia igualmente irritar-se se a caneta caísse do tampo da mesa quando estava em plena criação, ou passar uma tarde a zurzir em Shelley e, sobretudo, Dostoievsky, escritor que odiava por ser russo, louco e confuso. Por outro lado, admirava cegamente Flaubert e Maupassant, e admirava-se a ele próprio a ponto de durante o namoro com Jessie levar os manuscritos para que ela os lesse em voz alta.A excitação consigo mesmo podia levá-lo a longos silêncios de contemplação interior e ruminação - ainda que rodeado de amigos à espera das suas fabulosas narrativas orais. Depois, e a despropósito, era capaz de perguntar sobre o paradeiro de Napoleão ou de Mussolini (para os matar), ou de citar um ou dois capítulos de Madame Bovary ou de Educação Sentimental. Eça em InglaterraAos consulados ingleses de Newcastle e Bristol (o mais produtivo literariamente) Eça de Queirós (1845-1900) somou diversas itinerâncias, por dever de ofício diplomático ou por auto-recreação (dizia-se um viajante omnívoro), além de uma prolífica actividade de cronista e andarilho que nunca perdia de vista os factos do seu tempo. Notas Contemporâneas, a sua obra-prima de jornalismo, ensaio e crítica de costumes, dá conta de passagens de Israel ao Suez, a par de textos sobre ilustres confrades como Victor Hugo ou Ramalho Ortigão, o companheiro de As Farpas e de folhetins.Enquanto viajante, Eça foi pioneiro da reportagem, da investigação literária e da ousadia. Nos anos de 1869 e 1870, Eça viajou até ao Egipto para visitar as obras do canal do Suez. Dessa visita relatada em tom épico e picaresco - pelas façanhas e facécias da modernidade e do progresso - resultariam O Mistério da Estrada de Sintra, de 1870, e A Relíquia, apenas publicado em 1887. A ser alguma das suas personagens, Eça seria Fradique Mendes, o aventureiro viajante co-ficcionado com Ramalho na Correspondência de Fradique Mendes e em O Mistério da Estrada de Sintra.Em Inglaterra, escreveu obras capitais como Os Maias e A Capital, prosas hábeis que mostram o provincianismo dos portugueses como nenhum outro escritor ousara retratar. Talvez por ter vivido quase sempre fora do país - estudou em Coimbra e trabalhou como administrador municipal em Leiria, onde fez a sua estreia literária enquanto novelista com O Crime do Padre Amaro, de 1875 - Eça tenha sido o mais visionário e lúcido dos escritores portugueses, cuja obra permanece moderna e discutida. Em Bristol, além da casa, do monóculo e da escrivaninha do escritor (que escrevia sempre de pé e de casaco assertoado), ainda se lêem as Cartas de Inglaterra e se charla a propósito dos belos retratos do little portuguese, herdeiro do bom vinho, de Swift e Sterne, sobre as prosápias imperialistas britânicas, tão actuais como agora.Hemingway em CubaUma das ironias utilizadas pela escritora Gertrude Stein, na guerra particular de rábulas com Ernest Hemingway (1899-1961), foi dizer que ele tinha um olfacto especial para encontrar bons lugares para viver e comer. Finca Vigia, a quinta rústica nas cercanias de Havana que lhe serviu de residência mais prolongada em Cuba, preenchia esses requisitos. Era o paraíso possível no universo da sua felicidade muito particular. Escrever pelas manhãs, sufocar de livros, gozar a languidez das tardes e a lhaneza dos amigos numa poltrona de couro, além da companhia de dúzias de cães, 57 gatos e uma criação feroz de galos de combate.«Esta Finca é um lugar esplêndido... ou era», confessava Hemingway, em 1958, numa entrevista a George Plimpton. A alternativa de usar o verbo no pretérito significava a aversão à fama atingida com o prémio Nobel que lhe convertera a Finca num centro de peregrinação de toureiros, boxeurs, soldados, pescadores e candidatas ao estatuto de «mrs. Hemingway». Antes, o escritor vira-se obrigado a abandonar o primeiro refúgio cubano, o Hotel Ambos Mundos, em Havana Vieja, hoje o segundo lugar mais procurado pelos seus aficionados na capital cubana, a seguir à Bodeguita del Medio.Na década de trinta, Hemingway fizera do hotel a base de operações das suas campanhas de pesca grossa na corrente do Golfo. Alugara o quarto ao mês, por uma centena de pesos. Uma assoalhada lúgubre e sem número, no quinto piso, mobilada com duas mesas-de-cabeceira e uma cama de casal de madeira ordinária, além de um bacio e um estirador adornado por uma vasilha. As janelas davam para a antiga catedral e a entrada do porto e do mar, a norte. Dava ainda, a leste, para a península de Casablanca. A maravilha de então - e de agora - eram os telhados do casario que se estende como uma onda larga até ao molhe. O quarto mantém-se intacto, em memória do escritor, tendo por companhia um precioso exemplar da Bíblia da literatura castelhana: uma primeira edição de Dom Quixote, de Cervantes.Porém, dez anos mais tarde, num regresso heróico da Guerra Civil de Espanha, à época do romance com Marta Gellhorn - a sucessora de Pauline Pfeiffer na lista de quatro casamentos -, precisava de outro local, à medida da fama ganha entretanto. Corria o ano de 1939 quando, num anúncio de jornal, Martha descortina uma velha quinta (Finca) nos arredores. Quando a visitam, Hemingway torce o nariz. Tem um estilo colonial que o seduz, mas o estuque e os pilares são uma mera recordação. Ali não fica. Está dito. Martha recupera a casa em segredo e transforma-a num formoso refúgio campestre, a antecâmara de livros como O Adeus às Armas ou O Velho e o Mar. Henry Miller na GréciaA Segunda Guerra Mundial apanhou Henry Miller (1891-1980) numa viagem espiritual pelo Mediterrâneo. O amigo Lawrence Durrel, apaixonado por Alexandria e pelas civilizações antigas, recomendara-lhe o exílio grego, com mulheres, tavernas e retzina (vinho para todos os males). Dessa estada nasceria O Colosso de Maroussi, memorial de deambulações homéricas, em que o escritor discorre intensamente sobre a amizade, o amor, a política internacional e a vida mundana, como protagonista de um mundo perdido. O livro é também um magnífico palimpsesto que recorda as passagens de Lorde Byron pelo ateneu, quando os jardins da Acrópole eram respiráveis e os homens recitavam poesia ou travavam-se de razões a propósito de tudo e de nada.Acompanhado por Katsimbalis, poeta, pensador, orador ilustre e «mestre dos monólogos» - baptizado em honra da cidade homónima -, Henry Miller instala-se no Grand Hotel, virado para a Praça da Constituição de Atenas, e logo se maravilha com o branco e o azul, as cores dominantes na Grécia, da linha do horizonte aos tinteiros das rotativas dos jornais.Numa das suas saídas de Atenas, Miller enfrenta o mar de Hydra e Spetsai. Em tom dramático, pois a escolha do barco a remos para a travessia revela-se imprudente. O mar encapela-se. As vagas impedem a viagem. No porto de Portocheli a chuva cai em torrentes. Vai à taverna do molhe e pergunta se há algum marinheiro disposto a enfrentar a tempestade, algum barbudo capaz de arriscar a vida por dois dólares? Apesar de sovina, dispõe-se a pagar trezentas dracmas (três vezes a corrida). Tudo é um jogo. Pensa: talvez a nado consiga alcançar a terra de Ulisses. Seria uma morte romântica, à medida de outros poetas afogados no Mediterrâneo...Jack Kerouac no Big SurJack Kerouac (1922-1969) procurou refúgio no Bir Sur, uma longa faixa na costa central da Califórnia, entre as montanhas e o oceano Pacífico, para escapar à fama e à bebida. O escritor deixou Nova Iorque farto de ser perseguido por «adolescentes histéricos» - os beatniks nascidos do seu romance Pela Estrada Fora (1957), símbolo da beat generation. Enquanto Pela Estrada Fora é um road-book em que o autor percorre a vastidão da América pacóvia a exibir as suas tendências anarquistas e libertinas, em Big Sur (1962) há uma expiação atormentada, a memória dos dias negros de um ser afogueado em gemidos, pesadelos, remorsos e devastação interior.Fisicamente, o Big Sur é um santuário de cedros, sequóias, araucárias (e mais um milhão de árvores e plantas), onde as montanhas de Santa Lúcia correm abruptas e marginais às enseadas furiosas do Pacífico. Espiritualmente, era o remanso preferido de um elenco de crentes nos poderes telúricos, um dos lugares da América mais incensados pela beleza espontânea. Kerouac tinha pouco mais de 30 anos mas o corpo de quem já vivera dez vidas. Porém, os ares do Big Sur fizeram milagres.Por exemplo, conseguiu permanecer uma tarde inteira (até ao pôr do Sol) sem tocar em álcool. Conseguiu ainda levantar-se cedo algumas manhãs e cozinhar um guisado. O Divino acabou por se revelar na forma de um gaio-azul. Kerouac ficou-lhe grato, louvando o gaio que todos os dias lhe assomava à varanda da casa defronte para o mar. Discutia budismo e filosofia zen. Acreditava em Deus e na salvação. O livro é sobretudo a via sacra de um alcoólico célebre. A primeira parte corresponde a três semanas exactas de ressaca. Malcom Lowry em CuernavacaA escolha de Cuernavaca para Malcolm Lowry se estabelecer, em 1938, ter-se-á devido aos incómodos da Lei Seca nos EUA, onde ainda pensou residir (em San Diego, na Califórnia), e à excelente qualidade do mescal, a bebida eleita depois da tequila, do pulque e da cerveja preta. Por outro lado, no México Lowry (1909-1957) podia passar os dias em tronco nu, de calções rotos (o seu apreço pela roupa era vago) e acamado à beira-mar a curar-se da última ressaca que muitas vezes se sobrepunha à última e à antepenúltima. Fora isso, Lowry era um apaixonado por lugares tropicais, praias e mar, três glórias da paisagem mexicana.Entre as várias histórias que se contam, muitas delas resultado da mais pura invenção, há uma passada na estância balnear de Acapulco. Lowry era já um cidadão desonrado a quem as autoridades taxavam de bêbedo incorrigível, e estava de férias com a mulher, Marguerie Bonner, num hotel da moda. Debaixo da alucinação do sol da tarde e dos inúmeros cocktails, gatinhou 35 metros até às rochas altaneiras de onde se atiravam os saltadores de La Quebrada, disposto ao triplo mortal - ou a matar-se com estrondo. Mal chegado, desatou aos berros que só faria o salto (encarpado e à retaguarda) se enchessem a lagoa de gim.Lowry iniciou cedo o seu processo de alcoolização, que lhe deu quase tanta fama como a autoria de Debaixo do Vulcão, depois de andar embarcado no navio Pyrrhus numa gorada intenção juvenil de ver o mundo. Nas tardes de folia com os amigos, gostava de dizer que tinha bebido todos os líquidos à face da terra, até loção de barbear e o próprio mijo durante uma sádica estada hospitalar.Antes de viajar até ao México, fez uma ronda hispânica na companhia do poeta Conrad Aiken (um tutor pago pelo pai para cuidar da sua educação), e ficou conhecido em Granada como «o bêbedo inglês». De Espanha conheceu sobretudo tabernas, castas de vinha, o calão e uma fixação por chapéus cordobeses. Apesar dos muitos périplos da sua vida itinerante, Lowry era dominado por terrores de cada vez que se aproximava o dia de uma viagem. Detestava atravessar fronteiras e ter de lidar com guardas-fiscais - na segunda estada no México, em 1946, o subchefe dos Serviços de Emigração de Acapulco chamou-lhe: «Bêbedo, bêbedo, bêbedo. É esta a sua vida.»Jackie Kennedy em Martha"s VineyardEm Martha"s Vineyard, falar de Jacqueline Lee Bouvier Kennedy (1929-1994), ou mais prosaicamente de Jackie, equivale a citar o céu das divindades. O buxo da casa dos Kennedy e as praias de Menemsha - o trajecto diário de Jackie para assistir ao pôr do Sol mais encantador da ilha e desentorpecer das tardes ociosas no alpendre - são lugares de culto cobiçados. Quem ali vá, o mais certo é deparar-se com excursões de peregrinas (locais e estrangeiras), de óculos e lenços Gucci, calças pretas justas de cetim e bicicletas pasteleiras de aros reluzentes, a calcarem as pedras que Jackie pisou.Durante uma década, de 1953 a 1963, a então senhora Kennedy fez da ilha remanso de fins-de-semana e férias. Às revistas dizia-se encantada por várias coisas naquela terra: lagartos irisados, aves canoras, gaios, alpendres, cadeiras de baloiço, lareiras, trilhos, quintas, cavalos, velhos álamos de troncos retorcidos, bétulas, ancoradouros, faróis e faroleiros, champanhe, caviar, zumbidos de abelhas, o carrossel mais antigo da América (com mais de trezentas figuras de tamanho real), ou o coreto de Oak Bluffs onde ainda hoje toca a banda.Há longos anos, os Kennedy fizeram uma casa que não pode ser vista da estrada. Uma protecção contra paparazzi. Hoje, meio século depois, a ilha é uma opulenta quinta de celebridades. Carly Simon, Billy Joel, Cindy Crawford, Michael J. Fox... todos estes, e mais alguns famosos têm a sua casa envidraçada alusiva ao solar dos Kennedy. Apenas o polémico Spike Lee evitou os vidros em excesso e preferiu as madeiras de abeto recicladas.Quando fazia social, Jackie frequentava os concursos de pesca em Dutcher Dock animados por sósias de Ernest Hemingway, Mark Twain e Herman Melville. Depois, retirava-se como uma Guinevere (chamava «Camelot» à Casa Branca) e partia, solitária e seráfica, aos concertos de sapos, às danças de cegonhas na beira dos lagos ou aos comícios de gansos. Sabe-se que Jackie gostava de molhar os pés à porta de casa - a água do mar chega à entrada da porta das casas, até da dos Kennedy. Em homenagem, as peregrinas de agora sentam-se nos ancoradouros, descalças, a abanar os pés. Atiram a cabeça suavemente para trás e compõem os óculos (Gucci) e a franja.