Bom dia!.Quando se está de folga durante a semana pode aproveitar-se o dia de uma forma bem diferente do que ao sábado ou ao domingo. A folga sabe mais a folga e a hipótese de vermos o mundo onde moramos de forma diferente é mais que uma possibilidade, quase uma certeza. Por isso, na sexta-feira fiz aquilo que é uma rotina nesses dias quando estou fora do jornal. Dei um salto até Ibiza, comi um arroz de pato e li o suplemento Livros do Le Monde. A pastelaria com nome de ilha espanhola fica na fronteira com o meu bairro - o Arco do Cego - e, felizmente, teima em manter esse prato na ementa às sextas..Antes de me sentar aí, compro o jornal. No caminho espreito para confirmar se na folha branca colada no vidro da esplanada está escrito "Há arroz de pato" e, naqueles minutos que antecedem a refeição, saboreio o prazer do arroz tostado no forno como a minha avó fazia quando eu era criança. São daquelas lembranças que nos ficam para sempre e que o entrevistado do suplemento cultural confirma como boas..Na última página está impressa uma conversa com o escritor norte-americano Tom Wolfe, com uma fotografia em que gosta de mostrar como representa na perfeição a imagem dandy. Está sentado num sofá forrado a motivos árabes, com o queixo sobre as mãos cruzadas e apoiado numa bengala, vestido de branco ovo dos ombros aos pés. .A entrevista começa com um relato do tempo em que era miúdo e o pai dirigia um jornal para agricultores. Lembra-se de ver o pai a escrever "Como utilizar o mel..." e duas semanas mais tarde as palavras surgirem impressas, como se fosse uma magia. Foi perante esse acto de prestidigitação que decidiu "Um dia, serei escritor!". .Eu não me lembro do que pensava quando via a minha avó a desfiar sucessivos patos e a embrulhá-los em arroz e distribuir mais rodelas de chouriço do que as necessárias para agradar aos netos e, por isso, continuo a ler. Tom Wolfe conta muitas outras histórias, umas sobre livros, outras sobre o seu jornalismo, e as "lendas" vividas suficientes para encher uma página. Decerto que muitas não couberam, mas para isso o entrevistador redige um final onde há espaço para a imaginação: "No rosto do escritor, vejo passar a promessa feita em criança, há muito tempo, na paisagem perfumada do Sul, a região onde as vozes são doces e a ambição ilimitada." .João Céu e Silva.Jornalista.joaoceu@dn.pt