Porque há acidentes? Os acidentes na construção civil já provocaram 51 mortes este ano. Quedas em altura, soterramentos e derrocadas são as principais causas. A falta de guarda- -corpos, os ferros expostos e as aberturas desprotegidas estão entre os riscos mais frequentes nos estaleiros das grandes, médias e pequenas obras. A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) já inspeccionou mais de 9,5 mil empresas em 2008. O DN acompanhou dois dias de inspecção em obras da Grande Lisboa. Três obras em cinco visitas foram suspensas por risco global para os trabalhadores. Os operários conhecem os perigos que enfrentam todos os dias, mas dizem não ter opção..Arriscar-se a cada manhã nas obras da construção civil .Marcelo Lisboa, pintor e encarregado de obra, já não pode trabalhar. A obra de pintura de um edifício residencial na Parede, em Cascais, acaba de ser interditada pelos inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). Aos 42 anos, tem razões de alma suficientes para perceber as razões desta interdição. A cada manhã, quando sobe no bailel - andaime utilizado para pintura -, Marcelo relembra a tragédia do irmão. Maurício Lisboa, cinco anos mais velho, morreu faz amanhã três meses. Também pintor, Maurício trabalhava dentro do bailel no solo quando uma falha eléctrica fez o andaime subir sem comando. O colega pulou durante a subida, Maurício não conseguiu. O travão e o solavanco na chegada do andaime ao topo do edifício derrubaram-no, morreu imediatamente. Deixou mulher e uma filha adolescente, elas não querem falar, traumatizadas que estão pela perda recente. "Quando subo ao andaime, passa-me o filme da tragédia que se abateu sobre o meu irmão, mas preciso de trabalhar, não tenho alternativa", lamenta Marcelo..Este ano já morreram 51 pessoas por acidentes de trabalho na construção civil - 17 por queda em altura e sete por esmagamento, os acidentes mais comuns nas obras. Na primeira semana de Setembro, a derrocada de um edifício em Braga tirou a vida a três trabalhadores da construção civil. A falta de escoramento nas paredes provocou o desabamento. "A minha irmã perdeu o marido e pai das suas duas filhas, recebeu uma indemnização, mas ainda não está a ser paga a pensão", relata Agostinho Silva, cunhado de uma das vítimas. Aquela foi uma semana trágica - outros quatro operários da construção morreram em acidentes em Bragança, Ponte de Lima e Santa Cruz do Douro. Os inquéritos de averiguação das causas e das responsabilidades dos acidentes ainda decorrem..O DN acompanhou por dois dias a inspecção da ACT em obras na região de Cascais, três dos cinco estaleiros visitados foram interditadas por risco de vida para os trabalhadores. Na obra em que Marcelo estava a trabalhar, o uso do bailel requer a autorização e a inspecção pela ACT antes do início da actividade. No dia 25 de Setembro, a empresa responsável pela pintura enviou à Autoridade o pedido. A inspecção acontece no dia 2 de Outubro, quando três das quatro faces do prédio de 15 andares e 50 metros já estão concluídas. Os cinco operários equipavam-se para iniciar o trabalho na última superfície quando chegaram os inspectores Luís Jerónimo e Eduarda Graça. "A obra será interditada porque não há segurança no acesso ao andaime do terraço e porque não é permitido usar o bailel sem autorização, os dias parados devem ser pagos", alerta Jerónimo aos trabalhadores. Como encarregado da obra, Marcelo justifica que os equipamentos para montar correctamente "estavam para chegar hoje, dois meses e meio depois do início das actividades", reconhece. Também afirma que "o patrão exige o uso do equipamento de segurança"..Risco global no estaleiro.É o primeiro ano em que a Autoridade possui um plano de acção. Reduzir a sinistralidade e garantir o trabalho digno são os eixos do planeamento. Do sector da construção civil à restauração, todos os ramos de actividade laboral são fiscalizados pelos sete inspectores que compõem a equipa de Lisboa Ocidental - que abrange Oeiras, Sintra e Cascais. "Através do plano, dos informes das empresas de abertura de estaleiros, no caso da construção, das denúncias e do que observamos em campo estruturamos o roteiro de inspecção", esclarece Eduarda Graça. .Antes mesmo de estacionar, "de olho", os inspectores já identificaram riscos de segurança para os operários do que será um lar para idosos com mil metros quadrados de área construída, localizado em frente ao mar na praia da Parede. "Não há guarda-corpos, os ferros estão expostos sem o cogumelo de protecção, as escadas de acesso não possuem corrimão e as aberturas estão desprotegidas. Também há risco do talude cair, pois não possui a inclinação adequada, e o estaleiro está desorganizado, com equipamentos espalhados pelo chão. É risco global, será interditada", sentencia a inspectora Eugénia Martins.."Saber dos riscos sabemos, já alertámos o subempreiteiro. Falta-nos material para fazer as protecções", responde Ângelo Cardoso, encarregado geral da obra, aos inspectores. Os 26 trabalhadores a actuar neste dia são identificados. O horário de trabalho, as folgas, a remuneração, e os dados do empregador são algumas das perguntas do inquérito. As empresas são notificadas e têm um prazo, em média de 15 dias, para apresentar à ACT os documentos probatórios das suas actividades e das relações laborais com os seus empregados. Nesta etapa, o lar para idosos possui sete subempreiteiras, mas o número pode aumentar nas próximas fases, estão previstos cem trabalhadores para o pico da obra. "A característica do sector é a subcontratação, quanto maior a cadeia, menor é a protecção para os trabalhadores. A maioria ganha o salário mínimo nacional pelo contrato e um pouco mais por fora, valores que não são declarados", informa o inspector Bispo Lourenço..Durante a visita, o director de obra esteve fechado no seu gabinete, num contentor localizado dentro da área de edificação. "O senhor estava aqui e não se apercebeu da presença da inspecção, que os trabalhos foram paralisados?", questiona, estupefacto o inspector Jerónimo. "A suspensão é imediata, isto está tão mal que nós duvidamos que os encarregados de segurança da obra venham fiscalizá-la. Numa obra deste porte, as visitas devem ser frequentes", alerta. O director de obra, engenheiro, permanece calado enquanto a inspecção lhe explica as irregularidades e que a empresa deverá apresentar à ACT um plano para sanar os riscos apontados. Após a Autoridade aprovar as medidas de correcção e proceder a uma nova visita para confirmar a adopção dos procedimentos de segurança, as actividades poderão ser retomadas..A falta de "cultura de segurança" é um bluff das empresas na óptica do director de serviços da AECOPS - Associação das Empresas de Construção e Obras Públicas. "As obras são adjudicadas em acordo com os preços. Para reduzir os custos, as empresas cortam em material de segurança", diz José Costa Tavares. As empresas não reconhecem e alegam que os trabalhadores deixam de usar os equipamentos de protecção individual. .EDIÇÃO COMPLETA EM PAPEL.Leonid foi atingido por uma tábua nas costas e ficou paralítico.Na manhã de 20 de Julho de 2005, Leonid estava a retirar a cofragem - protecção de madeira usada para suster o betão - com a qual havia esculpido as pranchas de mergulho da piscina do parque municipal de Viseu. A três metros de altura, com o corpo curvado, recebeu na coluna vertebral o impacto de um taipal de madeira de 2,5 metros e 3 cm de espessura que fazia parte da cofragem dos pilares da cobertura. Partiram-se-lhe as vértebras C4 e C5, o corpo foi derrubado para o chão com o choque e a queda resultou em traumatismo craniano e o braço esquerdo partido. Esteve sempre consciente. "Sentia apenas metade do meu corpo, não conseguia mexer as pernas, toquei-as para confirmar que estavam lá e percebi a tragédia", recorda-se Leonid Kravchuk, ucraniano, 43 anos, sobre os instantes que se seguiram ao acidente que o deixou paralítico..Uma casa de repouso do Estado para a terceira idade, localizada na Amadora, é a residência de Leonid. O filho Sasha, com 20 anos, veio da Ucrânia para o ajudar com as tarefas quotidianas: tomar banho, vestir-se, preparar a comida, deslocar-se para as consultas médicas e para as audiências. Abaixo da cintura, Leonid não tem movimentos ou controlo fisiológico, os músculos atrofiaram. Perdeu o equilíbrio e muitas vezes perde o domínio do tronco. Toma medicamentos para a dor, vias urinárias e estômago. Nem sempre consegue ir para a fisioterapia, porque há poucas vagas e porque é longe. .À época do acidente, Leonid ganhava mil euros no fim do mês. A empresa descontava para a Segurança Social em relação ao valor recebido, mas efectuava o pagamento em relação ao salário mínimo. Entrou em baixa de imediato ao acidente, mas teve de esperar três meses para começar a ser pago. Indemnizado pelo Estado por "incapacidade elevada", recebeu o correspondente a 14 prestações do salário mínimo, inclusas as férias e subsídio de Natal. Como pré-pensionista ganha cerca de 300 euros. Dez porcento sobre esse valor são atribuídos a cada um dos dois filhos. "O meu pedido à justiça é para receber a pensão de acordo com o ordenado total recebido como carpinteiro, o que significaria em média 700 euros. Tenho 100% de incapacidade física.".Engenheiro nuclear, casado com uma enfermeira e com dois filhos, Leonid trabalhava numa fábrica nos arredores de Odessa. "Queria conhecer o mundo e melhorar a situação económica dos meus, por isso vim para Portugal." Ao longo de cinco anos, a trabalhar na construção civil em Portugal, o ucraniano diz ter visto muitos acidentes. A piscina foi a sua última obra. "O estaleiro foi inspeccionado muitas vezes e as actividades interrompidas por falta de segurança." Para Leonid as empresas não estão preocupadas com a vida das pessoas. "Segurança exige dinheiro..."