Ó patego, olha o balão! Não sei quantos ainda se lembram desta expressão, que era frequentemente usada nos tempos da minha juventude. Parece-me que alguns olharam, de facto, mas não viram todas as dimensões do balão chinês. Ficaram deslumbrados e desbobinaram umas banalidades sobre o tamanho do objeto, a espionagem a que estaria associado e o míssil que o mandou abaixo. Faltou refletir sobre a face oculta do balão. Ora, a coisa não surgiu por acaso. Nem a trajetória ocorreu ao sabor dos ventos. O incidente tem várias leituras políticas muito sérias. Aconteceu para ser visto - daí a dimensão do balão - e para ter um impacto político multidimensional..Foi lançado uns dias antes da visita prevista de Antony Blinken a Beijing. Esta deslocação do secretário de Estado americano era considerada pela direção política chinesa como muito importante. De tal modo que seria recebido pelo Presidente Xi Jinping, na linha da política de abertura em relação aos EUA recentemente acordada. Além dos problemas bilaterais, seria discutida a questão ucraniana e o papel de ambos os países na procura de uma solução de paz. No seguimento dessa discussão, a China enviaria o secretário do Partido Comunista a Moscovo, Wang Yi, para tentar perceber qual poderia ser a resposta de Vladimir Putin..O balão fez implodir essa agenda. Ou seja, mostrou que haverá na China quem não estará de acordo com a nova política de Xi Jinping em relação a Washington e tenha procurado sabotar a viagem de Blinken. Isso significaria que poderá existir, na China de agora, uma fratura interna muito significativa ao nível da liderança. E que possa haver quem pense que o alinhamento com a Rússia é mais vantajoso que um mínimo de cooperação com os EUA. Ou seja, que os recursos naturais da Rússia pesarão mais no futuro da China que o comércio, a cooperação científica e a paz com os americanos. Teremos de um lado algumas cúpulas políticas e do outro alguns sectores militares?.O facto é que se pode estar a resvalar para um novo patamar de confrontação entre essas duas superpotências. O discurso do Presidente Joe Biden sobre o Estado da União, proferido esta semana perante o Congresso, atacou claramente a China, passando da competição à rivalidade pura e dura, com traços bem marcados de hostilidade. Este foi um dos poucos momentos da intervenção em que se ouviram expressões de apoio vindas dos dois lados do espectro político, democratas e republicanos..E na China, onde se continua a negar a natureza militar do balão -- que apesar de ter passado o tempo a sobrevoar bases americanas teria apenas como finalidade recolher dados meteorológicos, segundo juram a pés juntos --, o assunto continua nas primeiras páginas dos média, como um exemplo do caracter belicoso dos americanos..Foi neste quadro que António Guterres se dirigiu no início da semana à Assembleia Geral da ONU e fez um balanço da situação internacional. Tratou-se de um discurso realista, sombrio e alarmante. Com a agressão russa, a hostilidade americano-chinesa, vários conflitos insolúveis noutras partes do globo e as crises da pobreza e do meio ambiente como pano de fundo, Guterres disse com todas as letras que o nosso planeta parece estar a caminho da sua própria aniquilação. Para além da possibilidade de um conflito nuclear ou de uma guerra de grandes proporções, lembrou-nos que a não tradução em ações concretas das promessas feitas nas reuniões sobre o clima levará a temperatura média a aumentar 2,8 graus Celsius até ao final deste século, muito além do limite máximo de 1,5. Isto, só por si, provocará uma tragédia de proporções incalculáveis. E será mais uma fonte de conflitos, guerras, desastres humanitários e de destruição da biodiversidade..Tudo o que mencionou deveria fazer-nos pensar e obrigar os grandes deste mundo a assumir um outro tipo de responsabilidades. Infelizmente não é assim. A começar por cada um de nós, sobretudo nos países mais desenvolvidos: estamos mais preocupados com o nosso conforto imediato, do que com a salvaguarda do futuro, o nosso e o dos nossos descendentes. Considero que nos últimos cinquenta e tal anos aprendemos a ser profundamente individualistas, a hipotecar o futuro e a esquecer a dimensão coletiva das nossas vidas. Dizemos, entretanto, que os políticos não pensam no longo prazo. Mas a verdade é que nós, cada um de nós, tampouco o faz..Conselheiro em segurança internacional. .Ex-secretário-geral-adjunto da ONU