É no campus da Nestlé Portugal, inaugurado há um ano em Linda-a-Velha para reunir todos os que fazem a marca e dar-lhes um espaço com o conforto de casa (a que nem falta a horta com produtos que podem colher e levar para o jantar), que me recebe para um brunch a rigor. E a escolha de Anna Lenz não podia fazer mais sentido: há quatro meses sentada na cadeira de CEO em Lisboa, é uma mulher de família e uma apaixonada pelo que faz. O marido e os filhos num lado, a Nestlé, que conhece intimamente, no outro. Assim se equilibra a balança desta suíça formada em Matemática Teórica e fluente em seis línguas, que escolheu Portugal como casa. Literalmente: "Em 43 anos, só comprei uma casa, e foi no Chiado. Este é o país em que quero viver.".Nascida em Zurique, de pai italiano e mãe alemã, é no português com açúcar que traz na ponta da língua desde que conheceu o marido, carioca de gema, que me conta como aqui chegou e admite que mesmo sabendo que a vida profissional ainda a levará a outros destinos, além dos 30 países em que já assimilou e passou o legado da Nestlé (os cargos de topo não ficam mais de cinco anos seguidos na mesma geografia), é em Portugal que se vê reformada. Fala sem amarras, fazendo das gargalhadas vírgulas e pautando as palavras com gestos abertos pouco comuns em quem tem uma multinacional nas mãos. O calor no trato derrete qualquer herança de rigor helvético que poderia ter nas veias..À mesa, sanduíches variadas, croissants, fruta, iogurte, bolinhos e os imprescindíveis pastéis de nata, um jarro de sumo de laranja e a máquina de café Nespresso a postos. Conta-me que a Nestlé foi a única empresa que conheceu e a plataforma perfeita para conhecer o mundo graças a um programa corporativo que põe jovens recém-formados a observar as mais diversas vertentes da operação em todas as partes do mundo com a missão de perceber o que pode ser melhorado. "Eu formei-me em Matemática Teórica e estava em casa da melhor amiga com o namorado dela e um amigo que trabalhava em auditoria internacional na Nestlé quando me contaram sobre esse programa que nos levava do fundo de pensões da empresa na Austrália à fábrica do Gabão. Viajar não era tão fácil como hoje e aquilo atraiu-me; e numa feira de emprego fui ao stand da empresa e entreguei o meu currículo. Chamaram-me para uma entrevista às 8.00 e às 21.00 do mesmo dia deram-me contrato. Foi a única entrevista que fiz na vida", recorda..De Zurique, Anna partiu para o mundo e num dos poisos da América do Sul viu-se em pleno Carnaval do Rio de Janeiro. "Ninguém se deu conta que nesses dias não há trabalho possível no Brasil..." Mas a viagem revelou-se melhor do que a encomenda: não só experienciava algo único nos seus 25 anos como seria em plena Lapa que conheceria Marlon, um jovem advogado a trabalhar na PWC por quem se encantou sem desconfiar que viria ali a nascer um caso muito sério. Entre o espanhol que ela falava e o português do Brasil com que ele se declarou àquela morena, entenderam-se tão bem que ficariam juntos até hoje. Anna já revelava então o cansaço de acordar a cada mês num fuso horário e com um clima distinto e acabou por conseguir um cargo em Londres, com responsabilidades na área financeira. Marlon estava escalonado para também se fixar em Inglaterra, mas a crise do subprime empurrá-lo-ia para o Luxemburgo e a jovem suíça, "aborrecida com as poucas horas de trabalho", inscreveu-se num MBA na London Business School que lhe restringia a possibilidade de estar tanto tempo quanto queria com o marido. A abertura do lugar de diretor financeiro para a Nespresso Itália, que exigia que o candidato falasse italiano, revelou-se a oportunidade ideal para tornarem a juntar-se.."Eu era muito nova, tinha 29 anos, e a Nespresso Itália já era um negócio gigante, de 200 milhões, por isso o meu chefe tinha dúvidas sobre se seria a melhor escolha, mas falar o idioma foi determinante", conta. "E foi um tempo superdivertido, a Nespresso cresceu 20% ao ano, havia muitas festas e ainda por cima o meu marido conseguiu vir para Itália." Com sucessos acumulados nas posições por onde passava, Anna foi subindo as escadas da Nestlé. De Itália foi para Lausanne, convidada para braço direito do tal amigo que lhe falara no programa de jovens da companhia, agora CFO mundial da Nespresso. Promovida apesar das duas gravidezes que cumpriu enquanto trabalhava na sede corporativa, viu abrir-se a hipótese de um lugar em Portugal quando começava a aborrecer-se da área financeira e nem hesitou em dar o salto.."Falar vários idiomas ajudou-me muito e esse tempo que passei aqui, de 2017 a 2020, como responsável da Nespresso, foi o melhor de sempre. É um país incrível, as pessoas têm ótimas qualificações e o compromisso profissional é excelente. Queria ficar aqui para sempre. Até porque foi aqui que nasceu a minha terceira filha, a Clara - a mais rebelde dos três -, e o meu filho, hoje com 6 anos, nasceu com Trissomia 21 e o sistema de ensino português é muito mais inclusivo do que o suíço." Elas andam no Liceu Francês, ele no Lar da Criança "e dão-lhe imensa atenção, puxam por ele, enquanto em Zurique quem não está entre os melhores é esquecido - o que não era um problema para a Nina, hoje com 9 anos, mas não servia tão bem as necessidades do Nico"..A constatação foi feita já depois de ter voltado para a Suíça, quando o CEO mundial da Nespresso lhe bateu à porta, em Lisboa, e a convidou para CEO da Europa. "Não tinha como recusar e lá foi de novo a família toda de armas e bagagens, mas eu disse sempre que, havendo hipótese, queria voltar para Portugal." Com 160 posições de topo na Nestlé, o chefe alertou-a que viver para um cargo aqui era limitador e pouco provavelmente o conseguiria em breve, mas a sorte estava do seu lado e ao fim de pouco mais de dois anos de volta à sede o diretor de Recursos Humanos alertou o CEO para a vaga em Lisboa e ele não quis bloquear os sonhos de Anna, destacando-a para CEO da Nestlé Portugal, onde chegou em julho. "Os próximos quatro anos estão seguros. Agora só tenho de ver como faço nos 25 que faltam até à reforma", ri-se..Anna sempre gostou de viver de mala às costas e a família não foi até agora impedimento. "O sonho do meu marido era o futebol, foi um joelho rebentado que o levou a resignar-se a ser advogado, por isso, quando tivemos de escolher qual de nós seguiria o outro - porque é preciso fazer escolhas, se queremos ser pais presentes não podemos ser os dois CEO - chegámos rapidamente ao consenso de que valia mais apostarmos na minha carreira. Até porque eu sou muito apaixonada pelo que faço." Tanto, que quando lhe pergunto se seria capaz de escolher entre ficar em Portugal ou ficar na Nestlé a dúvida lhe causa sofrimento visível. Não é capaz de escolher entre a certeza de ter encontrado o lugar onde gostava de passar toda a vida e uma empresa que lhe é quase tão querida quanto a família. "Para mim, não trabalhar seria o fim do mundo; o Marlon, enquanto esperava a legalização em Portugal e não podia trabalhar, até escreveu um romance", exemplifica..Mas não há hesitação quanto à importância dos filhos. "Quando eles forem um pouco mais crescidos, tiverem os amiguinhos, os primeiros namorados, temos de ver se eles continuam a lidar bem com a mudança a cada quatro anos" - essa será a escolha de Anna, a estabilidade e a felicidade da família em primeiro lugar, permitindo-lhe manter-se focada no trabalho que adora. Quando chegar o momento, virá a decisão..Anna nunca foi muito de planear. Quando era pequena, não fazia ideia do que queria ser e hoje valoriza essa leveza de não viver preso a expectativas que não só podem frustrar-nos como cegar-nos quanto a oportunidades que surgem no caminho. "Não sou religiosa, mas há coisas que acredito que acontecem por uma razão superior", diz, explicando que tem um framework de valores que a guiam. "Eu teria ganho muito mais dinheiro, sendo formada em Matemática Teórica e com uma tese em Opções Implícitas nos Seguros de Vida, se tivesse ido para uma seguradora; mas eu queria trabalhar com produtos, com algo tangível e com um propósito que fosse além de aumentar o dinheiro. Eu não viveria num país onde não soubesse ou não pudesse aprender a língua, entender o que se diz nos corredores, almoçar com colegas. E não queria mesmo trabalhar sozinha, sem falar com ninguém, que é muito a condição de quem faz pesquisa.".A licenciatura também foi escolhida pelo destino: Anna sempre gostou de idiomas - é fluente em alemão, francês e inglês, em italiano, espanhol e português, e na via de Humanísticas pela qual enveredou no liceu, escolheu grego e latim. Mas "um professor de Matemática fantástico" abriu-lhe os olhos para os números e o conselho de que sairia da faculdade com muito mais opções se estudasse o oposto do que era o seu forte, amplificando a sua mais-valia, selou a escolha. Ainda que a concretização não tenha sido livre de desafios - "Quem estava em Matemática é especial, não tem grandes social skills... éramos cinco mulheres para 70 homens e quando fiz o exame final até comprei uns óculos de vidro, sem graduação, para parecer mais séria", conta a rir -, revelou-se a escolha acertada. Até acabou por dar aulas, enquanto acabava o curso, a colegas de outras áreas, para ganhar dinheiro durante os estudos. "Mas seguir uma carreira académica nunca foi hipótese, aborrecia-me a ideia de estar 50 anos a fazer a mesma coisa.".Positivamente marcada por uma infância muito livre e uma família que se refez várias vezes, sempre acrescentando novos membros, dos três filhos do padrasto à meia-irmã nove anos mais nova, empenha-se em dar aos seus próprios filhos aquilo que nunca lhe faltou: o calor dos laços familiares e a independência para poderem encontrar a sua própria felicidade. Quanto a Anna, essa fórmula é simples. "Com três crianças, divertir-me passa muito pelos programas que eu e o Marlon fazemos todos os fins de semana, em família, e eventualmente encontrar-me para jantar e conversar com uma amiga, num serão mais calmo." Para a reforma, os seus planos não vão muito além de gozar Portugal e ter tempo para viajar, ler "aqueles livros levezinhos - mulher encontra homem, dá umas confusões e 300 páginas depois casam-se - e cuidar dos netos". Uma vida simples. E feliz.