Sei que tem uma longa experiência de 40 anos a trabalhar como antropóloga no Brasil, sobretudo na ilha de Marajó. Por que razão não se encontram no Brasil, um país enorme, construções pré-colombianas como aquelas que existem no Peru ou no México, em terras que foram dos incas, aztecas e maias? Tem que ver com a natureza? Tem que ver com a geologia. Quando vemos áreas que têm rochas mais macias, como o calcário, em algumas culturas temos os edifícios, as muralhas e todo o tipo de estruturas, mas nas zonas que não têm esse tipo de pedra, ou não a têm em grande quantidade, os povos usavam a madeira, os juncos, etc. Na verdade, é um tipo de casa mais confortável do que uma casa de cimento, por exemplo. O mesmo acontecia na floresta tropical africana, pois tanto a Amazónia como África tropical tendem a ter casas feitas de materiais da floresta ou semelhante, porque são mais frescas e confortáveis, são melhores em todos os aspetos do que as construções sólidas. Quando eu vivia na floresta do Orinoco, na Venezuela, que é semelhante à Amazónia, morei numa casa dessas e era muito agradável, com uma mesa no exterior onde comíamos. Era muito mais fresca e agradável do que a casa de cimento onde vivi quando lá voltei para terminar a minha tese. Nunca conseguia estar em casa, a temperatura durante o dia chegava quase aos 50º por causa do sol, era demasiado quente. Portanto, penso que a outra razão é que nos trópicos é muito melhor construir as casas em materiais mais leves e ligeiramente acima do chão, porque é simplesmente mais confortável e é mais fácil substituir as coisas..Acha que é um erro tentar ver nestas edificações, sejam as pedra sejam as de madeira, outros significados? Eles construíram em altura, mas nesta cultura que existiu talvez entre 400 e cerca de 1100, portanto antes das últimas ocupações pré-históricas, eles construíram também montículos muito grandes, mas a parte de cima das casas deve ter sido coberta de colmo. Nós sabemos que eles tinham colmo porque temos um caso de uma casa que ardeu e o telhado ainda estava lá no chão..E havia lugares no Brasil onde havia esse tipo de casas? Eles construíam casas, sem dúvida..Existe uma ligação entre o nível de civilização e essas construções? Talvez, mas a sociedade não era muito estratificada. É verdade que as sociedades têm recursos humanos para construir coisas, mas as sociedades do sul não eram organizadas dessa forma, sabemos agora. Não eram hierarquizadas e faziam as construções através do esforço comunitário. Era uma organização diferente, dentro da comunidade..Portanto, segundo a sua experiência, o facto de não haver aquele tipo de construções em altura no Brasil e outras regiões amazónicas deve-se ao tipo de pedra que havia disponível, mais do que à organização da sociedade? Sim, porque quando não existem os materiais de construção, não se consegue avaliar pelas estruturas, mas eles tinham estratificação de alguma forma. A sociedade Marajoara tinha uma arte maravilhosa. Em Lisboa, em museus, existem peças muito bonitas da cultura Marajoara, belamente pintadas, normalmente em três cores, por vezes quatro. São muito interessantes e é uma arte muito elevada, mas parece-me, das minhas escavações e das de outras pessoas, que não era uma sociedade muito hierarquizada. Portanto, as melhores peças de arte não são limitadas a obras de artistas especializados. No entanto, a última sociedade da área onde trabalhei, o baixo Amazonas, quase atlântico, tinha arte muito elaborada, cerâmica muito bonita..Quando fala de sociedades estratificadas, está a falar do poder de um governante, de existir uma classe de elite, e de haver trabalhadores, artesãos, que produzem para eles? Sim, mas se pensarmos nos Maias, tanto as pessoas comuns como as elites fizeram arte. Sabemos isso porque com os materiais que eles usavam, não era só a elite, mas esta, por vezes, assinava a arte. Como os Maias tinham escrita, sabemos alguns dos nomes dos artistas e eram parentes do governante. Assim, toda a gente fazia arte. No caso da sociedade Marajoara é interessante, porque parece que a maior parte das pessoas que trabalham a cerâmica na Amazónia são mulheres..Mesmo atualmente? Sim, com poucas exceções de alguns homens que se juntaram às comunidades amazónicas. A cultura Marajoara é uma das que considero mais interessantes porque ainda é uma cultura na Amazónia hoje em dia. Não morreu. Há um grupo no Peru, na verdade também há alguns no Brasil, mas o do Peru é mais conhecido, que continua a fazer a maravilhosa cerâmica pintada, com os mesmos métodos, tanto quanto sabemos..Estão a produzir uma espécie de arte pré-colombiana? Sim. Bem, eles não são pré-colombianos, mas estão a usar um estilo que se tornou importante no período pré-colombiano, que começou na ilha Marajó e espalhou-se pelo rio Ucayali no Peru. O que é interessante é que as pessoas que estudaram originalmente a arqueologia amazónica disseram que este belo estilo de arte vinha dos índios, mas não é verdade porque nós escavámos e datámos e vimos que as datas no Equador e no Peru eram muito mais tardias. As imagens na arte mais antiga são muito parecidas com as que fazem os shipibo, representam uma pessoa com uma camisa muito bonita e uns brincos maravilhosos que os atuais shipibo ainda usam. As imagens nas camisas são sempre o padrão anaconda..Os shipibo são originários de onde? Os shipibo são do Peru. O que é interessante é que nenhuma das imagens da arte Marajoara são de homens, são sim de mulheres, e os animais representados são sempre aqueles que os povos amazónicos consideram fazer parte do mundo feminino, que é a água e a terra. O mundo masculino é o ar e o sol. Quando o estilo se começa a espalhar pelo rio acima até aos Andes, começa a deixar entrar os homens na imagética. Começa a haver imagens de homens nas urnas funerárias. Em Marajó existem uns cemitérios elaborados, cheios dessas belas urnas pintadas com aguarelas, mas em perfeito estado. Devem ter tido um telhado por cima, uma espécie de caramanchão. Punham-nas todas juntas e quando não cabiam mais acrescentavam mais um andar. Um dia terei de voltar à ilha Marajó e trabalhar numa escavação para ver como é que estão os esqueletos, para testar a ideia se havia ou não estratificação. Porque podemos ver a qualidade de vida pela forma como afeta o esqueleto da pessoa. Por exemplo, no período Maia clássico existe um sítio de escavação onde sabemos tudo sobre o governante através do esqueleto, e também temos esqueletos de casas normais que usamos para comparação. Ele é muito alto e não tem defeitos, enquanto a maioria da pessoas tem anemia. Portanto, fica claro que a classe governante tinha alguns privilégios, nomeadamente na alimentação, não tendo uma dieta tão monótona como os restantes - demasiado milho e poucos frutos da floresta..Entre os maias havia consumo de carne? O canibalismo de que tanto se fala é mito ou realidade? Não penso que eles fossem canibais, mas muitas sociedades, incluindo as ocidentais no início da era histórica, usavam os esqueletos dos inimigos para assustar os atacantes. Punham-nos espetados nas paliçadas em redor das aldeias para mostrar às pessoas que era melhor terem cuidado... Penso que era mais esse tipo de coisa. Na verdade, não tenho conhecimento de canibalismo entre os maias. Também não acredito que os amazónicos fossem canibais. Há algumas pessoas que seguem essa ideia, mas eu não conheço provas. Por exemplo, Hans Staden, que foi um explorador alemão do século XVI no Brasil, vendia o seu livro sobre as suas excitantes explorações, mas nós não sabemos até que ponto o que ele escreve é verdadeiro..Mas comiam carne? O que sabemos sobre a dieta amazónica é que consistia maioritariamente em plantas, não carne..E peixe? Sim, comiam peixe, mas era 4% da dieta. Portanto, entre 70% e 90% da dieta são plantas. A mandioca é importante. Agora sabemos que eles adotaram as bananas que vieram de África, mas eram originalmente do sudeste asiático. São muito importantes na alimentação as palmeiras domesticadas, que são várias. No Brasil há também uma árvore de fruto maravilhosa chamada carioca que tem frutos amarelos e suculentos que eles cozinham como os ovos mexidos e comem com mandioca..A dieta tem bastante proteína? Tem bastante proteína e podem suplementar com um pouco de peixe, mas se se comer milho não é necessário muito, bastam 9% ou 10%..Isso significa que é possível serem 100% vegetarianos? Sim, tal como os macacos. Os macacos comem apenas, ao contrário do que afirma certa literatura, muitas folhas e frutos e, mais raramente, térmitas..Proteína animal não faz parte da dieta comum, só em casos extremos? Comem em quantidades muito pequenas, a base é sempre constituída por plantas..Sendo dos Estados Unidos, pensa que as tribos da América do Norte são muito diferentes das do Sul? Não necessariamente. Os índios da zona onde cresci, a floresta do sudoeste, que não é menos floresta que a Amazónia, têm um tipo de economia baseado na floresta. Eles comem frutos secos variados e um pouco de peixe e, em determinada altura, adotaram o milho, que não tinham no início, como na Amazónia. É interessante, porque durante a minha tese no Orinoco andei a pesquisar sobre a mudança da mandioca para o milho, mas é difícil porque não temos dados e há poucas pessoas especialistas nos tecidos das plantas para as poder identificar. No entanto, na minha tese pude provar que, a determinada altura, dá-se a entrada do milho, embora não fosse nada comum e não afetasse a química dos ossos. Porque, quando se come muito milho, tem-se um rácio diferente de hidrato de carbono nos ossos do que quando se come principalmente mandioca. Assim, quando o milho entra, as pessoas não o comiam muito. Era uma planta da América Central, não era tropical, mas em 500 anos o milho muda e adapta-se passando a ser tropical também. Os dois tipos de milho continuam a ser usados, mas de início penso que as pessoas o importavam, como um alimento especial. Depois vulgarizou-se e a química dos ossos mudou também. Voltando aos índios da América do Norte, eles faziam o mesmo tipo de caça que os da Amazónia, um pouco com objetivos cerimoniais - quando há a cerimónia de iniciação das raparigas, os homens têm de ir matar um animal, normalmente uma espécie de javali. O mais comum é trazerem um domesticado com que a rapariga tem de fazer uma sopa bastante líquida, porque com um bicho não dá para fazer uma grande quantidade..Isso passa-se hoje ainda no Peru? Sim, é a cultura peruana. Quando eles têm a iniciação das raparigas, que é uma espécie de grande festa que fazem quando as raparigas chegam a uma determinada idade, reúnem muita gente. Nós fomos convidados, assim como pessoas de toda a Amazónia, portanto é muita gente. Assim, só damos um pequeno gole na sopa e vemos um pouco da carne a flutuar. Não é um alimento importante. Durante o dia servem bolos de mandioca, peixe frito, etc. É uma atividade importante para os homens que se sentem pressionados pelas mulheres para a fazer, mas não passa disso. Em relação aos índios da América do Norte, sabemos que só no período de contacto com a Europa, quando receberam os cavalos dos espanhóis, é que caçavam os búfalos para venderem a carne aos colonos..É possível saber-se como era a sua cultura antes? Sim, de alguns conhecemos. Os índios de um grupo que conhecemos, antes do búfalo e do cavalo, eram agricultores de milho..Portanto, é possível que com a chegada dos primeiros europeus e dos seus cavalos os índios tenham passado da agricultura para outras atividades, sobretudo a caça? Sim. No entanto, nós não sabemos muito sobre as Grandes Planícies. Sabemos sobre os índios do sudoeste, que se baseavam muito no milho e sabemos também que era uma sociedade baseada na matrilinearidade. Era boa para os homens e honrava os homens, mas as mulheres é que eram as donas da casa..Essa sociedade matriarcal estava espalhada por toda a América? Depende, é variável. Apesar de os shipibo, ao contrário dos marajoara, terem aquelas belas imagens tanto de homens como de mulheres, a linhagem vem das mulheres. No entanto, noutra parte da Amazónia, no Rio Negro, a sociedade é completamente patriarcal. Eles têm uma história sobre as mulheres da Amazónia, dizem que em tempos as mulheres governaram numa grande parte da Amazónia, mas os homens revoltaram-se e derrotaram-nas. Dizem que as mulheres inventaram a religião, a espiritualidade, as artes e o artesanato e que os homens tinham de menstruar e ter crianças. Por isso, mudaram os papéis. Os homens revoltaram-se e derrotaram as mulheres. Algumas fugiram e agora as mulheres nem sequer podem assistir às cerimónias. Contudo, as mulheres ainda são as principais produtoras de comida, elas são agricultoras, pescam e confecionam toda a comida..O DN viajou a convite da GlexSummit.leonidio.ferreira@dn.pt