Ambição e perdição do poder ouvidas em 'Macbeth' como numa partitura

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Tragédia do poder enquanto ambição e perdição, numa soma de assassínios, resumindo a vida a "um conto contado por um idiota, cheio de som e de fúria", Macbeth (1505-06), sobre ser uma grande obra de Shakespeare, conhecida por famosas encenações e adaptações cinematográficas (Orson Welles, realizador e protagonista; Kurosawa, Polanski), é tida por maldição em si. Nem a sua nomeação se autoriza, na tradição das superstições teatrais.

Pois hoje, em Lisboa, as Produções Próspero (ver caixa) estreiam Macbeth no Trindade... e não há-de ser nada. Bruno Bravo encena, segundo tradução e adaptação de Fernando Villas-Boas, colaborador da produtora e actriz Valerie Bradell na divulgação do reportório shakespeariano. Nesta versão, o espectáculo começa pela segunda cena do I acto, no paço do rei da Escócia, Duncan (António Rama) e só depois aparecem as fantásticas Bruxas (I e III cena fundidas), arautos da ascensão do guerreiro Macbeth (João Lagarto), que volta, vitorioso, da guerra, acompanhado pelo nobre Banquo (também António Rama).

No cenário de Stéphane Alberto (onde predominan imagens virtuais, desenhadas em projecção de luz de José Manuel Rodrigues), as Bruxas movem-se em construções deslizantes sobre rodas. Dum grotesco macabro e divertido, entoam às tantas uma ladaínha com o refrão: "Roda, roda / roda o tacho. / Dá-lhe um fogo / do diá-á-ácho." Predizendo elas que Macbeth será rei, a ambição e a sofreguidão de realizar o oráculo, por parte do guerreiro intimidado e da esposa, Lady Macbeth (Valerie Braddell) - que o espicaça sempre a maior crueldade -, leva-os ao crime que outros crimes arrasta. Mergulha-os em culpas e pesadelos de sangue, reinando já sem gosto, perdidos numa solidão povoada de espectros.

Bruno Bravo, encenador e fundador do grupo Primeiros Sintomas, foi actor n'A Tempestade, a estrear--se em Shakespeare, que também jamais encenara. Até ao convite para Macbeth... e para um teatro à italiana. "Vi logo ali um desafio", conta ao DN. Durante o trabalho, pensou muito em Beckett: tinha encenado Endgame, com João Lagarto no protagonista. "É uma partitura, há equilíbrios nas repetições, há a poesia e a densidade humana"; embora textos e trabalho de actores sejam "profundamente diferentes", o encenador sublinha uma comum vertente "profundamente humana e psicológica". Num autor e no outro, tais características colocam-lhe a mesma questão desafiadora: "Como apanhar isso, também nas interpretações?" Face à vertente da densidade, Bravo considera até ser "possível fazer [o espectáculo] só com um actor ou um casal".

As três dezenas de personagens condensam-se em oito intérpretes: também Diogo Dória, Cristina Carvalhal, Anabela Brígida, entre outros."Vários actores desdobram-se, umas personagens têm também texto doutras, dando-lhes mais complexidade e ambiguidade", diz o encenador, para quem "Macbeth é um centro rodeado por um coro". Como escreveu, "é o guerreiro, no centro de um coro, a lutar contra vozes. Vozes que habitam nos outros, que habitam no ar, que habitam nos bosques, que habitam na sua cabeça".

"Cabeças cheias de escorpiões", como se ouve dizer, ali onde "há punhais no riso dos homens". Macbeth fica no Trindade até 15 de Março (quarta a sábado, 21.30 e domingo, 16.00; marcação para escolas).

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