Alzheimer ou cancro? Não há dinheiro para investigar e tratar tudo. É preciso fazer escolhas

A discussão sobre se é o lucro que deve definir o que se investiga e o que se trata na saúde está de novo em cima da mesa. António Vaz Carneiro, professor catedrático, e especialista nesta matéria diz ao DN o que pensa
Publicado a

A verdade é nua e crua. Demências ou cancro? Doenças cardiovasculares ou doenças raras? O que se deve investigar para melhor tratar? Esta é uma questão que está sempre presente e quer se queira ou não, seja a indústria farmacêutica, os governos, os médicos, os doentes, os cidadãos ou todos juntos, alguém vai ter de escolher. Os investimentos astronómicos usados para se investigar qualquer molécula, os riscos que se correm, os potenciais falhanços assim o ditam.

Não há dinheiro para tudo e há que começar a jogar pelo seguro. António Vaz Carneiro, professor catedrático, diretor do Instituto de Medicina Preventiva e Saúde Pública, diretor do Instituto de Saúde Ambiental e do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, diz mesmo nesta entrevista ao DN que não adianta continuar a colocar a cabeça na areia e acharmos que não temos nada a ver com o assunto. O especialista, que em 2009, estimou, baseado nos dados científicos que em Portugal não morreriam mais de 100 pessoas com gripe A, morreram 80, e que aconselhou as autoridades a não comprarem doses excessivas de vacina contra a gripe, mas a quem ninguém deu ouvidos, tem vindo a alertar sobre esta matéria e diz mesmo que o mais importante "é começar-se a fazer escolhas".

Não é possível funcionar de outra maneira, defendendo "uma solução transparente". Uma solução que junte à mesma mesa indústria, governos, profissionais de saúde, cidadãos. "O cidadão tem a faca e o queijo na mão", argumenta. A decisão das doenças a tratar deve ser tomada por todos...Uma coisa é certa: esta escolha não pode estar só nas mãos da indústria.

Em conversa com o DN, o médico, professor, diretor de vários institutos fala sobre o modelo de negócio da indústria e sobre o papel que cada um pode ter nas decisões que devem orientar a investigação de novos medicamentos e tratamento de doenças.

poucos dias foi notícia que um dos grandes laboratórios da indústria farmacêutica tinha desistido de investigar um medicamentos que poderia ajudar no tratamento da doença de Alzheimer. Tudo por que o custo não justificava o lucro. É o lucro que comanda a investigação da indústria farmacêutica?

O modelo de negócio da indústria é muito claro, transparente e não deve dar origem a dúvidas: a indústria existe para vender medicamentos numa perspetiva de negócio. Este o é o primeiro ponto. Porque para a indústria farmacêutica existir e vender medicamentos tem de se auto-sustentar, financeiramente falando, já que os investimentos na era moderna são absolutamente astronómicos.

Mas é só uma questão de negócio...

É um modelo de negócio absolutamente essencial, porque os laboratórios sabem que a taxa de medicamentos que se auto-financia é muito pequena. A maior parte das pessoas não sabe que seis em cada dez medicamentos não se pagam. Portanto, os outros quatro têm de pagar o investimento em todos os outros medicamentos, inclusive dos que falharam. É um modelo de risco e destina-se simplesmente a perceber qual é o mercado que determinado medicamento vai ter.

É esse o segredo, saber se atinge muitos doentes ou não...

É esse o segredo. Quantos doentes vão potencialmente beneficiar de um medicamento. A indústria farmacêutica move-se como uma indústria de mercado, move-se pelo lucro da sua atividade. E ainda bem que assim é, porque mais ninguém fabrica medicamentos a não ser esta indústria.

Mas diga-me uma coisa. Sempre foi assim. O lucro sempre moveu a indústria, mas porque é diferente agora relativamente a algumas doenças, como as demências em que também há um potencial imenso de doentes?

Pois é. Mas há doenças que conhecemos bem, que estão muito bem investigadas e para as quais é relativamente fácil fazer medicamentos. Há outras para as quais é muito mais difícil., como é o caso do Alzheimer. Aliás, é das doenças mais difíceis de investigar, já houve inúmeros falhanços de tentativas de lançamento de medicamentos eficazes. E o que normalmente acontece quando uma grande companhia falha uma tentativa de desenvolver um medicamento para uma doença específica, todas as outras imediatamente pensam duas vezes antes de avançar.

E isso porquê?

Pela dimensão do risco. Sabe-se que o desenvolvimento de medicamentos para as grandes patologias (cardiovasculares, oncológicas, reumatológicas, etc.) requer investimentos da ordem dos 1,0 a 2,33 mil milhões de dólares - isto contando com capital investido, depreciação, perdas totais e investimento direto durante os 13 a 15 anos que se leva para se conseguir comercializar um medicamento. Isto constitui um investimento astronómico.

Mas mudou alguma coisa nas escolhas da indústria para fazer investigação?

A indústria olha para dois tipos de doenças. Em primeiro lugar para as doenças mais prevalentes, cardiovasculares, cancro, diabetes, etc. procurando sempre desenvolver medicamentos para necessidades clínicas de grande dimensão. Mas há uns anos alterou o seu modelo e começou a olhar para um novo nicho, o das doenças raras. São doenças que pela sua definição têm poucos doentes, e tendo poucos o mercado é curto. Uma coisa é ter um mercado de 50 milhões de pessoas, outra coisa é um mercado de 50 pessoas. É uma realidade totalmente diferente. Uns têm de compensar os outros.

Empresas nunca vão desistir de procurar um fármaco para o Alzheimer

No caso das demências, do Alzheimer, é uma área com um potencial infinito...

A indústria desenvolveu até agora medicamentos com esta indicação, mas com benefício modesto. Têm algum efeito, mas não o que gostaríamos. Por exemplo, a indústria tem investido muito nas doenças do foro do sistema nervoso central, como a esclerose sistémica, mas os resultados obtidos não são os que se esperava. Os medicamentos que existem melhoram as crises destes doentes, mas a verdade é que o impacto na sua qualidade de vida ou na mortalidade é relativamente modesto. Portanto, a indústria está constantemente à procura de novas soluções. No caso da demência de Alzheimer a conversa é outra.

Porquê?

Porque - como já disse - é uma demência com um mercado potencialmente infinito: se todos vivêssemos até aos 120 anos todos teríamos doença de Alzheimer. É, portanto, uma área de grande interesse para a indústria, só que há um problema real: não conhecemos bem a fisiopatologia desta doença. E ao não conhecermos bem esta doença em toda a sua complexidade faz com que tenham de ser realizados múltiplos investimentos, obrigando a indústria a arriscar para tentar fabricar um medicamento que se espera que venha a ser um sucesso.

Relativamente a este medicamento da Pfizer, o que se noticiou foi que se tratava de um anti-inflamatório já usado para outra doença e que poderia ter vantagens para o Alzheimer, mas seriam necessários mais testes e ensaios clínicos. Isto não é novo, já aconteceu em outras situações.

O que aconteceu com a Pfizer, aconteceu também com a Lilly e com a Merck (para só mencionar estes) que têm tido idênticas barreiras relativamente aos estudos que têm feito. O que acontece é que o medicamento parece ser promissor, os testes nos modelos animais parecem sugerir que vai funcionar, mas, de repente, quando se chega à fase 3 dos ensaios clínicos, que são os que irão permitir ou não o avanço para a comercialização da droga, o medicamento falha. Ou seja, falha porque não tem benefício ou porque tem um perfil de segurança muito complicado. No caso das demências, como não tem havido grandes resultados, a indústria começa a encolher-se, argumentando que vai aguardar novas investigações e que naquele momento deseja suspender o processo de desenvolvimento do medicamento que estava a estudar.

Em termos estratégicos isso pode significar que a indústria deixará de procurar um medicamento mais eficaz para as demências?

Penso que a indústria nunca irá desistir de procurar um medicamento para as demências. Bem, o seu modelo de negócio também não lhe permite desistir de procurar novos medicamentos. O seu negócio central é a produção de moléculas que ajudem os doentes e que tratem os doentes. E como nós hoje tratamos muito mais doentes e muitas mais doenças duvido que a indústria algum dia desista de procurar novos medicamentos. Isso significaria o seu desaparecimento a médio prazo.

Mesmo para o Alzheimer...

Sim, nunca irão desistir. A indústria pode é seletivamente procurar áreas que tenham um retorno mais rápido em termos financeiros e em que seja mais seguro fazer estudos. Agora, se de repente um único laboratório descobrisse uma droga eficaz para o Alzheimer, esse laboratório passava a ser um dos mais valiosos do mundo, sem dúvida nenhuma. Portanto, os próprios laboratórios têm essa pressão. Por isso, nunca desistirão. Mas o que eles investigam ou não é uma decisão muito difícil, que cada companhia toma como acha melhor.

O modelo de negócio da indústria foi sempre o mesmo, mas a notícia da desistência de investigar um fármaco para o Alzheimer, que se junta a outras, já de há dois anos, sobre vários laboratórios que anunciaram desistir da investigação na infecciologia e nos antibióticos, porque não era lucrativo, não está a descredibilizar a indústria farmacêutica perante o cidadão?

Compreendo que as pessoas critiquem a indústria na perspetiva em que é uma indústria rica, com muitos recursos, mas não deixa de ser uma indústria com um risco financeiro muito elevado. Cada um dos grandes laboratórios tem 50 a 100 moléculas em estudo ao mesmo tempo, isto é um investimento absolutamente colossal. E é óbvio que, por vezes, os CEO destas empresas têm muita dificuldade em conseguir balancear os sucessos com os insucessos. Se pensarmos que o desenvolvimento de um medicamento é uma atividade que leva entre 13 a 15 anos de cada molécula, como é que se explica que estas empresas tenham de dar retornos financeiros à Wall Street de três em três meses? É claro que isto condiciona, e muito, as decisões das empresas.

Mas também têm ajudas de governos...

Por exemplo, o que aconteceu no caso das doenças raras, quando as empresas anunciaram que iriam deixar de investigar estas patologias porque pura e simplesmente não era rentável, porque o número de doentes ainda é pequeno, os governos dos EUA, do Canadá e da Europa deram-lhes melhores condições para financeiras e de mercado. Esta foi a única hipótese de as empresas arriscarem o investimento no estudo das doenças raras. Os governos tiveram de lhes dar benefícios fiscais, permitindo o alargamento do período de patentes, para ficarem com mais tempo de direitos de comercialização e assim lhes garantirem o retorno financeiro. Se não fosse assim, não teríamos investigação em doenças raras.

Tudo porque há um número reduzido de doentes e não compensa...

Exatamente. Se para uma doença tenho só dez doentes em Portugal, quanto é que tenho de cobrar para valer a pena investigar? A maior parte das pessoas pensa que o custo dos medicamentos é o tempo que demora a fabricar, mas não é. O preço de um medicamento tem a ver com o investimento global da empresa, cada novo medicamento custa aquilo que a empresa entende ser necessário e suficiente para manter a sua sustentabilidade financeira. Por exemplo, hoje sabe-se que para se fabricar medicamentos biológicos as fábricas são de alta tecnologia, que alguns são muito complexos, tudo custa centenas de milhões de dólares. Para se continuar a investigar estas drogas é necessário haver algo que pague este risco.

Há novas moléculas a ser testadas que certamente irão mudar a face da medicina

Deste ponto de vista, então é certo que a indústria prefere manter os doentes crónicos a curá-los?

Não. É curá-los também, se fosse possível. Um antibiótico é um tratamento de curta duração mas cura uma infeção. A questão é que a doença crónica é responsável por 75% do que se gasta na saúde. O grande mercado da indústria é a doença crónica e não a doença aguda. Mas assim é-lhe possível ter uma margem de lucro suficiente que lhe permita continuar a investigar coisas novas - investigar uma nova classe de medicamentos que mude a face da medicina, como foi o caso das estatinas, por exemplo. Há uma medicina antes e depois das estatinas...

Há muito tempo que não acontece algo assim?

O modelo continua a ser o mesmo e a indústria continua sempre à procura de novos doentes que não são tratados, para que o passem a ser. A indústria está constantemente à procura de novas oportunidades, de novos nichos de mercado para poder comercializar com sucesso os seus produtos. Hoje, esta é uma realidade muito superior à que existia há 20 anos. Há novas linhas de investigação que vão provavelmente mudar a face da medicina e a forma como a vamos exercer nos próximos cinco ou dez anos. Estou absolutamente convencido disso

Isso quer dizer que a investigação está ou vai de facto a mudar...

Vai, mas vai depender também muito da pressão social e dos cidadãos. Os cidadãos têm a faca e o queijo na mão no sentido em que podem e devem dizer o que querem que seja investigado.

É possível?

É. Os recursos são finitos e o modelo de negócio da indústria é muito complexo. E ninguém, nenhum governo, tem dinheiro para tomar conta de todos os doentes. Portanto, é necessário fazerem-se escolhas. E é aqui que a coisa se complica, porque em bom rigor e se olharmos para Portugal, não fazemos escolhas.

Mas quando dizia que o cidadão tem a faca e o queijo na mão a que se referia?

Referia-me à importância que tem o facto de o cidadão poder decidir juntamente com as autoridades o que se vai tratar. No fundo, refiro-me a uma solução que sente à volta da mesma mesa governos, outros agentes do setor, como as companhias de seguros, profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, doentes e as suas associações, a indústria farmacêutica, etc. para se tentar discutir e concluir, de maneira mais ao menos racional, quem é que se vai tratar e as áreas de tratamento em que vamos investir nos próximos cinco, dez ou quinze anos. Porque a verdade é esta: não há dinheiro para tratar todos os doentes com tudo o que há disponível. As novas tecnologias são demasiado caras, e podemos afirmar com segurança que não há país nenhum no mundo que o consiga fazer. Por isso digo que o cidadão tem aqui um papel extraordinariamente importante, e se for bem enquadrado e bem informado saberá definir as áreas que quer ver privilegiadas no investimento futuro.

Até agora isso é feito pela indústria farmacêutica...

Prioritariamente. Parece-me mais razoável, que as áreas de investigação sejam definidas pelos médicos e pelos cidadãos. São os cidadãos que contam, se estamos todos preocupados com a nossa sobrevida, porque vivemos até muito tarde, e com as demências que surgem, então é o cidadão que deve dizer se quer que se trate a demência ou o cancro.

Não são decisões fáceis...

Não, mas o que quero dizer com isto é que me parece que é desejável auscultar os nossos concidadãos, falar com eles, de uma maneira simples e clara sobre o que está em jogo e levá-los a decidir, e bem, em conjunto. Vamos decidir como nação a fazer de certa maneira e não de outra. Porque o que aí vem é muito problemático.

Porquê?

Só para o cancro estão neste momento a ser estudadas 3500 moléculas em sete ou oito mil ensaios clínicos. Se lhe disser, numa perspetiva ultraconservadora, que um por cento destes medicamentos, ou seja, 35 medicamentos, entram no mercado por ano e estamos potencialmente arruinados. É muito dinheiro investido e é muito dinheiro para tratar toda a gente. E não adianta colocarmos a cabeça na areia e dizer-se que não temos nada a ver com isto. É um problema de todos, mas temos de balizar as grandes linhas que queremos privilegiar na investigação.

Acha que esta solução é possível para cada país ou só a nível de uma União Europeia?

Acho que tem de ser possível a ambos os níveis. Inicialmente em cada país e depois a nível da UE. É algo muito difícil, quanto mais não seja porque os cidadãos teriam de ter acesso a uma informação de altíssima qualidade, mas esta informação existe e centros académicos podem disponibilizá-la. Em centros académicos independentes, em que não se trabalha para a indústria, não se pertence ao governo, às seguradoras ou às associações de doentes, é possível disponibilizar aos cidadãos a informação necessária para que eles compreendam o que está em causa e quais são as grandes decisões que se têm de tomar. Mais cedo ou mais tarde é isto que vamos ter de fazer.

Sob pena de...

Olhe, sob pena de não estarem a pedir aos médicos que o façam, que sejamos nós os clínicos a fazer esse papel. Temos de perceber que se o dinheiro é finito, nunca vai ser possível tratar toda a gente com tudo (repito). E a minha proposta é que este processo seja transparente, que seja feito com os cidadãos. Até pode ser criticável, mas antes de o ser, quero que seja transparente. O cidadão tem de saber porque é que isto é assim e não de outra maneira qualquer.

Isto significa que a medicina e a relação médico doente também vão ter de mudar?

Tenho uma visão que é um bocadinho polémica mas que me parece realista. Se a tendência que se tem verificado nos últimos dez anos se mantiver, no sentido em que a medicina que se pratica é cada vez mais dispendiosa e exige cada vez mais recursos; que os doentes exigem cada vez mais qualidade nos cuidados e cada vez mais acesso, passaremos a ter não um só médico assistente, mas uma equipa de médicos a tratar de um doente (um pouco como já acontece hoje em dia nos cuidados intensivos). Se a isto associarmos as novas tecnologias, penso que a relação médico doente vai evoluir de uma forma que não irá exigir sempre a presença física do médico. Mas a boa notícia é que os cuidados serão consideravelmente melhores. Acho que a evolução será radical e que a prática clínica nos próximos 20 anos será substantivamente diferente do que é agora...

Diário de Notícias
www.dn.pt