Alquimia feminina no celeiro

Aqui está uma nomeação para melhor filme que mais parece de conveniência. Apesar do elenco notável, <em>A Voz das Mulheres</em>, de Sarah Polley, não consegue fazer corresponder a solidez do argumento à vida das imagens.
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Mulheres à conversa num celeiro. Eis a força e a fraqueza de um filme que reúne nomes tão sonantes como Frances McDormand, Rooney Mara, Claire Foy, Jessie Buckley e Ben Whishaw (sim, um homem entre elas). Força, porque de facto podemos vislumbrar a beleza do texto na troca de palavras dessas mulheres; fraqueza, porque cada plano de Women Talking, sobretudo dentro do celeiro, é de uma tremenda falta de imaginação. Ainda mais num filme, assinado pela canadiana Sarah Polley, que começa por nos informar, através da narração em off, que o que se segue é "um ato de imaginação feminina". Não deixa de ser irónico.

A história de A Voz das Mulheres é adaptada de um romance de Miriam Toews que, por sua vez, se inspirou em factos reais ocorridos numa colónia menonita na Bolívia, mais ou menos na mesma altura dos acontecimentos do filme - 2010 -, cuja localização nunca é dada explicitamente. Essa abstração faz parte do jogo: o nosso olhar deve recair sobre aquelas mulheres enquanto seres que carregam um sofrimento ancestral e universal, embora o seu contexto seja particularmente atroz. Elas vivem encerradas na experiência dessa comunidade religiosa, dedicando-se ao trabalho agrícola e doméstico e submetendo-se à autoridade patriarcal, que se traduz em atos de abuso inominável: os homens da colónia drogam as mulheres com sedativos para vacas e violam-nas, dizendo-lhes depois que os ataques são de origem sobrenatural ou fruto da sua própria "imaginação selvagem"... Um dia, um dos homens é apanhado, e outros, para o protegerem, levam-no para uma cidade próxima. É nessa janela de ausência masculina que as mulheres de algumas famílias se reúnem para decidir se ficam ou partem daquele lugar.

Sentadas no celeiro, na presença cúmplice de um homem tímido (Whishaw) que tem como tarefa redigir a ata da reunião - uma vez que elas não sabem ler nem escrever -, as mulheres vão desfiando os seus pensamentos, de forma mais ou menos exaltada, sobre questões como o perdão, o significado de ficar ou partir e o conflito entre a sua fé cristã e a realidade que toleraram até àquele momento. Não há nada de novo no curso destas reflexões, mas o que merece elogio no texto de Sarah Polley (nomeada para o Óscar de melhor argumento adaptado) é o modo como se sugere que aquelas mentes femininas estão a descobrir alguma luz no movimento socrático da linguagem. Aí reside a essência do título.

Infelizmente, esta centelha das palavras não é acompanhada por um gesto claro de realização, qualquer coisa que retire o filme da redundância panfletária. Polley não se agarra à "música" contida nas vozes das mulheres, preferindo recorrer às convenções do drama para insuflar os sentimentos e dar ao conjunto uma dimensão épica um pouco forçada. Não é que não haja momentos de graça e calor humano, mas a sua execução é francamente desengraçada, sem o mínimo rasgo, presa a um registo banal que trava o eco da eloquência ferida destas personagens. Como se tudo o que foi dito se evaporasse na palha daquele celeiro - só não acontece porque Whishaw escreveu a ata.

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