É um dever de memória. Tínhamos que fazer alguma coisa." José da Silva Teotónio terá sido o grande impulsionador da recriação histórica de um episódio ocorrido em 1942, na aldeia do Vale da Pedra, perto de Leiria. Mas, tal como a maioria dos habitantes, só teve conhecimento daquilo que foi chamado de "a revolta do milho" há pouco mais de 10 anos..Aconteceu quando a mãe, Maria de Jesus (conhecida como Maria Adelina), nascida em 1932, decidiu escrever um livro de memórias, onde figurava uma de infância: o dia em que um grupo de populares (12 homens e duas mulheres) foram presos e condenados pelo crime de sedição, permanecendo durante um ano na cadeia de Peniche, depois de se oporem à entrega de 1000 quilos de milho ao Grémio da lavoura, num tempo de fome e de crise..José Teotónio fala ao DN poucos dias depois do falecimento da mãe, que apesar de pouco escolarizada revelou sempre grande interesse pela escrita e pela literatura. E ele, que apesar de ter nascido no Brasil foi criado no Vale da Pedra desde muito novo, absorveu todo o interesse pela cultura local. Em plena pandemia, integrou a direção da Associação Recreativa e Cultural Valpedrense, Souto da Carpalhosa, e nesse grupo de amigos fez nascer a ideia: uma recriação da revolta do milho, 80 anos depois. Mas os constrangimentos ainda decorrentes da pandemia acabaram por empurrar o assinalar da efeméride para este ano, comemorando assim a libertação daqueles conterrâneos..David Ferreira, presidente da coletividade, acabaria por operacionalizar tudo, através de uma candidatura ao Orçamento Participativo do município de Leiria. Superando todas as expetativas criadas na associação, o projeto da recriação histórica da Revolta do Milho foi o mais votado. "Consultei o regulamento, percebi que havia abertura para uma candidatura do que gostaríamos de fazer. Mas tive de a fazer em nome individual, mesmo sabendo que era o coletivo que ali estava", conta David Ferreira, enquanto a Associação Valpedrense se prepara para receber este sábado o maior evento cultural de que há memória por aquelas bandas. "Será a melhor homenagem que podemos fazer a estes corajosos", sublinha o presidente da associação..O encontro está marcado para o largo da igreja do Vale da Pedra, às 21.30 horas, com a recriação histórica a cargo do Gato - Grupo de Amigos do Teatro. O evento acabou por integrar as Comemorações Oficiais dos 50 anos do 25 de Abril do município de Leiria. Para isso, e com a verba de 45 mil euros disponibilizada pelo Orçamento Participativo, concorreram vários fatores. "Tivemos de contratar um historiador (Adélio Amaro) para pesquisar e atestar da veracidade do episódio, e também um encenador (Fernando José Rodrigues) que, com base nos factos, construiu uma peça de teatro", revela David Ferreira. Vários populares participam como figurantes nesta iniciativa, numa clara reconciliação da aldeia com a história.."Vamos ter um evento cultural como nunca tivemos. Teremos até uma taberna antiga para vender comidas, como naquele tempo", adianta. Entretanto, por iniciativa da Junta de Freguesia do Souto da Carpalhosa, foi inaugurado recentemente um monumento que evoca a Revolta do Milho..Os arquivos históricos mostram que no dia 29 de junho de 1943 foram libertados 14 cidadãos (12 homens e duas mulheres) da cadeia do Forte Peniche. Tinham sido condenados pelo crime de sedição - mesmo sem nunca terem sido julgados - na sequência do movimento que ficou conhecido como a Revolta do Milho, que acontecera em maio de 1942 no lugar do Estremadouro, Leiria.."Estas 14 pessoas, oriundas das freguesias de Souto da Carpalhosa, Bajouca e Monte Redondo, tinham-se oposto à entrega de 1000 quilos de milho e foram identificadas como as organizadoras e mentoras da revolta. Para além destas, mais 22 pessoas foram presas e interrogadas durante vários dias na PSP de Leiria, apesar de não lhes ter sido aplicada pena tão gravosa", refere David Ferreira, certo de que, durante muitas décadas, aquela passagem da história local "foi completamente ocultada". "Para muitos, foi motivo de vergonha e de vexame. Inicialmente era também por medo que não se falava do assunto. Mas, depois de 1974 [revolução do 25 de Abril], penso que foi sobretudo por vergonha", acrescenta..Atualmente, "já nenhum dos protagonistas está vivo". E, entre filhos e netos, nem sempre é um tema fácil de abordar, já que durante décadas "apenas se comentava em surdina, no seio das famílias", considera José Teotónio Silva, certo de que "era uma coisa que não se contava a ninguém"..Tudo mudou quando uma reportagem do jornal Expresso, em 2019, sobre as únicas duas mulheres que passaram pela cadeia de Peniche veio destapar essa memória. Tratava-se afinal de duas habitantes daquela terra, Maria de Jesus e Teresa Marques, atiradas para uma cela coletiva, conjuntamente com os 12 conterrâneos. Os nomes fazem parte dos 2510 presos políticos elencados agora junto ao Forte de Peniche. "Houve ainda uma outra mulher, Maria do Outeirinho, também condenada e citada nos autos, mas conseguiu fugir às autoridades e nunca chegou a ser detida", conta David Ferreira, orgulhoso do momento em que a comunidade local vai finalmente "prestar a devida homenagem a estes cidadãos, que se opuseram violentamente à política do Estado com a qual discordaram. "E pagaram um alto preço pela sua coragem", sublinha..Para lá da recriação teatral, José Teotónio acredita que "há aqui muito material para fazer um filme. Afinal, "a história tem tudo: drama, luta política, luta pelo poder". De resto, está convicto de que "foram muitos destes pequenos gestos que acabaram por dar origem à revolução de abril de 1974"..dnot@dn.pt