Ai, Jesus

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O Dia da Criança não passa de um pleonasmo, já que todos os dias o são. Não falo daquela história em que o Natal é quando um homem quiser (o tal homem que apareça a 3 de Agosto em casa dos cunhados com um tupperware cheio de filhós e verá a consoada que o espera). A verdade é que o mundo padece de infantilidade agravada e Portugal, a julgar pelas aparências, é ainda mais infantil.

Olhem em redor. Quase tudo o que acontece por aí parece pensado à medida de um cérebro com 5 ou - receio ser injusto - 7 anos. Vídeos "giros" e "virais". Falanges de apoio a José Sócrates. Astrólogos na televisão. A televisão em geral. Marco António Costa. Corridas por causas "nobres". As múltiplas uniões das esquerdas. "Ciclovias." A obsessão com os chefs. Jorge Jesus. Culpar a Sra. Merkel ou o "destino" pelas desgraças pátrias. Sapatilhas tamanho 43 com oito cores e luzes reflectoras. Homens com barba e saudades do Verão Azul. O uso do verbo "sinalizar" no jargão "social". O jargão "social". Bonés com a pala para trás (onde se comprará isso?). Os "romances" do filho de Freitas do Amaral. Freitas do Amaral. As regulares indignações do Facebook. Multidões que acorrem a adorar cançonetistas atrozes. Um sujeito chamado Sampaio da Nóvoa. Chega?

Falta o "caso" Jorge Jesus. Das ocasiões em que me apareceu pela frente (no ecrã, salvo seja), apurei que o Sr. Jesus é um indivíduo que masca chiclete, grita imenso, dá tabefes a agentes da PSP, recebe tabefes de jogadores, exibe um penteado espectacular e fala um dialecto aparentado do português. Não justificassem essas razões a atenção que suscita, o homem é além disso treinador da bola. Há dias, trocou o Benfica pelo Sporting e o país experimentou um 11 de Setembro à sua escala (sobretudo mental).

De súbito, as televisões, a imprensa e as fatídicas "redes sociais" interromperam o que quer que estivessem a fazer para se dedicar sem parança ao relevante tema. Comentadores esmiuçaram a competência do Sr. Jesus. Juristas dissecaram cada hipotética alínea do novo contrato do Sr. Jesus. Mirones plantaram-se à porta da casa do Sr. Jesus. Historiadores desenterraram a biografia do Sr. Jesus. Estalinistas retocaram uma fotografia do Sr. Je- sus. Filósofos debateram a ética do Sr. Jesus. Genealogistas invocaram o pai do Sr. Jesus. Teólogos discutiram as profundezas da alma do Sr. Jesus. Parapsicólogos registaram aparições do Sr. Jesus em hotéis. E populares, hordas de populares, foram chamados a fornecer ponderadas opiniões alusivas. Às vezes, as emissões passavam em revista os subenredos do drama e respectivas personagens secundárias: o presidente do Sporting; o presidente do Benfica; os políticos que lhes prestam vassalagem; os repórteres que tratam todos por "senhor presidente"; o treinador despedido em função da indumentária; etc.

Estarão a brincar? Não estão. Atrás de uma bola corre sempre uma criança ou um português crescido. Do povo às "elites" (não se riam, por favor), boa parte da população acha que o futebol e o folclore do futebol são coisas sérias. Eis o único universo digno do interesse colectivo, de que o Sr. Jesus é estrela particularmente cintilante - ou um buraco negro. Se, por delicadeza, não comento a densidade intelectual do Sr. Jesus, talvez valha a pena considerar a densidade intelectual dos milhares ou dos milhões que transformam o Sr. Jesus num assunto. Não admira que o país oscile permanentemente entre a humilhação da dependência e a iminência da catástrofe: o que é admirável é que este jardim-escola à beira--mar plantado continue a existir. Nas mãos de irresponsáveis e rematados malucos, não promete existir muito tempo, e sobretudo não o merece. É simples, tão simples que só uma criança e um adulto dos nossos não percebem.

Domingo, 31 de Maio

A derrota da barbárie

Acabou a pouca-vergonha. Até agora, em qualquer lugar do país, qualquer meliante à frente de uma confeitaria vendia falsos pastéis de Chaves( R ) ao cliente sem escrúpulos que os requisitasse, colocando em risco a saúde pública e a própria coesão social. Mas a infâmia não se repetirá: a Comissão Europeia, que não dorme, concedeu ao dito folhado o estatuto de produto com indicação geográfica protegida. Daqui em diante, pastéis de Chaves( TM ) só fabricados em Chaves ou vendidos em Chaves. O crápula que, sem autorização, distribua a guloseima em Moimenta da Beira ou em Vieira do Minho terá as autoridades à perna e, desejo sinceramente, um futuro no calabouço ou nas galés. Não admira que o autarca e os comerciantes da cidade transmontana vivam desde há dias em pronunciado júbilo, a fazer as contas às exportações (de pastéis congelados) e ao turismo (em busca dos pastéis fresquinhos). Só falta criar uma confraria e duas fundações alusivas aos pastéis de Chaves( C ) e a Comissão Europeia alargar a justiça às iguarias de outras paragens, incluindo a fêvera de Alpiarça e o bacalhau de Sacavém. E esperar que ninguém repare no vazio legal que envolve as bolas-de-berlim. Nunca é boa ideia irritar os alemães.

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