A esmagadora maioria das manchetes e análises da imprensa mainstream ocidental sobre os atuais acontecimentos no Afeganistão é patética. Nas redes sociais, o desespero é aflitivo. Alguns lamentam a morte dos soldados dos Estados ocidentais cujos governos os mandaram para aquele país unicamente por causa da geopolítica. Outros, mais lunáticos, pedem uma intervenção militar internacional já. Precisam todos de ler o lúcido e certeiro texto de Miguel Esteves Cardoso - "Que grande derrota" - publicado ontem, 16, no Público..Como diz MEC, a derrota ocidental era previsível, pois "quem vive na sua terra, por poucas armas que tenha, tem a arma mais poderosa de todas: o tempo". Tal desfecho, acrescenta, pouco ou nada tem que ver com o facto de os ideais por que se batem aqueles que vivem na sua terra serem, eventualmente, "horrendos ou não, aos nossos olhos [ocidentais]; os nossos olhos não interessam nada nesse dia-a-dia, nesse terreno, nessa realidade só para nós difícil, só para nós incompreensível"..De facto, e com toda a empatia com os mortos inocentes, em ambos os lados, uma pergunta se impõe: o que foram os Estados Unidos e os restantes países ocidentais fazer ao Afeganistão? Não respondam que foram combater o terrorismo islâmico, proteger a democracia e os direitos humanos e salvar as meninas de Cabul. Se esses argumentos fossem válidos, a maior potência mundial teria de intervir militarmente em muitos outros países, a começar, por exemplo, pela sua querida Arábia Saudita..Será preciso lembrar que os talibãs foram apoiados pelos Estados Unidos a fim de expulsar os soviéticos do Afeganistão e pôr fim ao regime de inspiração marxista-leninista da época? A verdade - factualíssima e, portanto, irrefutável - é aquela descrita por Hamid Gul, um ex-chefe das secretas afegãs: "Quando a história for escrita, será dito que os talibãs, com a ajuda da América, derrotaram a União Soviética no Afeganistão e depois, com essa mesma ajuda, derrotaram a América no Afeganistão.".Por falar no governo socialista do Afeganistão derrotado pelos talibãs, com apoio dos Estados Unidos, e nas "meninas de Cabul", é bom lembrar também que foi nesse breve período que as mulheres afegãs tiveram acesso a direitos, como o de estudar e não só, que hoje todo o mundo brada aos céus estarem em risco, por causa do regresso dos fundamentalistas islâmicos locais ao poder..Quanto a saber o que foram os EUA fazer o Afeganistão, a resposta é dada pelo mercenário norte-americano Sean McFate, com várias atuações em África, posteriormente doutorado e autor de um livro já famoso - As Novas Regras da Guerra -, na entrevista que o DN publicou no último sábado, 15: ninguém sabe ao certo; a única coisa clara, segundo ele, é que a intervenção americana no Afeganistão foi motivada pelos interesses do complexo industrial-militar dos EUA..As palavras são dele: "Os EUA estão por fim a sair do Afeganistão, o que é muito controverso, não entre o povo americano, mas entre os membros da classe de DC. O general Petraeus disse que temos de ficar, George W. Bush disse que temos de ficar. Não dizem porquê. (...) Há algo destas empresas de biliões que querem vender armas...".Para o autor de As Novas Regras da Guerra, "o complexo industrial-militar dos EUA é uma espécie de estado profundo, onde empresas como a Ratheon, a Boeing ou a Lockheed fazem pressão no Congresso para se comprar mais aviões de caça" (e outras farão pressão para vender outras armas e equipamentos)..McFate considera que o Afeganistão (tal como o Iraque) foi o maior equívoco estratégico norte-americano nos últimos 70 anos. Ele destrói com contundência o argumento de que a intervenção dos Estados Unidos no referido país se destinava a combater a Al-Qaeda: "A Al-Qaeda está em 20 países depois de a termos escorraçado do Afeganistão", disse. Bem, ela acaba de voltar..Em tempo: não consta que Sean McFate seja comunista..Escritor e jornalista angolano, diretor da revista África 21