Mariazinha é uma mulher perdida, mas no sentido anglo-saxónico. Preferia sê-lo no âmbito do arcaísmo português: mulher perdida, mulher de má vida ou, ainda mais lindo, mulher da "vida". A expressão em português antigo ainda alberga algum destino, algum sexo. E, ao menos isso, é explícita quanto à existência de vida. Não: Mariazinha é perdida à inglesa: looser. .Nem sempre foi assim, ou é isso que hoje pensa, inconsciente das melhoras que o tempo invariavelmente faz às dores remotas. Mas, embora guarde uma memória vagamente feliz de um tempo qualquer antigo, já não se lembra quando é que o Peru se lixou. [Não é que Mariazinha tenha lido Vargas Llosa, só Márquez, García Márquez, mas não se arranja melhor do que o arranque da Conversa na Catedral do Llosa para descrever os dias de Mariazinha. Todinha e no original: "Desde la puerta de 'La Crónica' Santiago mira la avenida Tacna, sin amor: automóviles, edificios desiguales y descoloridos, esqueletos de avisos luminosos flotando en la neblina, el mediodía gris. En qué momento se había jodido el Perú? Los canillitas merodean entre los vehículos detenidos por el semáforo de Wilson voceando los diarios de la tarde y él echa a nada, espacio, hacia la colmena. Las manos en los bolsillos, cabizbajo, va escoltado por transeúntes que avanzan, también, hacia la plaza San Martín. Él era como el Perú, Zavalita, se había jodido en algún momento. Piensa: en cuál? Frente al Hotel Crillón un perro viene a lamerle los pies: no vayas a estar rabioso, fuera de aquí. El Perú jodido, piensa, Carlitos jodido, todos jodidos. Piensa: no hay solución." Isto pode explicar resumidamente o sentimento de Mariazinha. .Mariazinha acorda de um sonho mau. Veste um roupão encardido e vai à cozinha ver se ainda há leite. Não há: o frigorífico foi despejado pelas suas fantásticas companheiras de casa que não são mulheres perdidas no sentido anglo-saxónico. Nem um pingo de leite, nada. Só uma couve-flor impante. Enjoada só de olhar a couve, fecha a porta e resigna-se. .A casa é um monte de destroços. O chão nunca está limpo, as paredes prestes a cair cobrem o piso de um pó branco, a caliça. A humidade deixa um rasto que Mariazinha evita, sustendo ligeiramente a respiração. Falta um bocado a uma porta, algumas persianas não correm e da casa de banho vem o evidente cheiro a esgoto que, misturado com a humidade, contribui para a grandiloquência do nojo. Mariazinha entra na banheira e o roupão encardido descai para o chão, sempre molhado por uma fuga de canalização habitual. Aguarda a água quente, que não vem. Quem devia ter pago o gás esqueceu-se. Mariazinha desiste do banho. Agora é uma mulher perdida e suja.|