"A União Europeia reaproximou muito checos e eslovacos"
Stanislav Kázecký, embaixador da República Checa, e Josef Adamec, embaixador da Eslováquia, estão de partida de Portugal. Fluentes em português, aceitaram conversar com o DN sobre o país em que ambos nasceram e que deixou de existir em 1993, essa Checoslováquia criada a 28 de outubro de 1918, faz hoje exatamente 99 anos.
O embaixador Adamec era criança em 1968, aquando da Primavera de Praga. Como foi crescer na Checoslováquia, que, de repente, deu esse grito de liberdade contra a tutela de Moscovo?
J.A.: Eu tinha 11 anos. Mas mesmo como criança sentia, através dos eventos na escola ou nas atividades extraescolares, o vento de esperança. Lembro-me de quando fui às comemorações do aniversário do levantamento nacional eslovaco antinazi de 1944 em Banská Bystrica de sentir euforia; também quando fomos ao monumento a Milan Štefánik, um dos pais da Checoslováquia. Antes de 1968 o regime comunista ignorava a sua pessoa e o seu legado. Mas depois veio o 21 de Agosto de 1968 e lembro-me muito bem porque na minha cidade estava o quartel-general do exército para a República Eslovaca. Então, claro, que foi dos primeiros alvos. Ainda me recordo da cidade cheia de soldados soviéticos.
Embaixador Kázecký, nasceu já depois de 1968. Cresceu a pensar que o regime um dia ia cair e que ia haver de novo democracia como quando a Checoslováquia foi fundada em 1918, faz 99 anos?
S.K.: Isso era bastante óbvio na segunda metade dos anos 1980, sobretudo nos anos 88 e 89 com a fuga dos alemães de Leste, que através de Praga foram para a Hungria e depois, via Áustria, entraram no mundo ocidental. E, claro, com a queda do Muro do Berlim, percebia-se que alguma coisa ia mudar. Depois houve novembro de 1989, com a nossa Revolução de Veludo. Para a minha geração foi importante a visão da reconexão com o resto da Europa, sem muros.
Mas, de qualquer forma, essa Checoslováquia onde cresceu era um país agradável de viver apesar do constrangimento político? Havia alguma diferença qualitativa que jogasse a favor da Checoslováquia comunista?
S.K.: Acho que em comparação com outros países do Bloco Comunista a Checoslováquia e a República Democrática Alemã eram mais desenvolvidas.
Os checoslovacos sentiam que, apesar de tudo, viviam num país privilegiado em relação a outros comunistas?
J.A.: Não privilegiado, mas com melhores condições de vida. Eu estudei na União Soviética e com os próprios olhos vi, apesar de toda a propaganda, como realmente viviam com dificuldades as pessoas lá, sobretudo fora de Moscovo.
Vivia-se muito pior na União Soviética do que na Checoslováquia?
J.A.: Com certeza.
E na sua experiência?
S.K.: Eu vivi sob o comunismo até aos meus 18 anos e um rapaz com 18 anos tem outras preocupações. Mas claro que senti alguns limites do regime comunista. Vivia numa cidade a 60 quilómetros da fronteira com a Áustria e via televisão austríaca. Sabíamos que lá atrás do Muro estava outro mundo. Uma das coisas mais aborrecidas era não podermos sair do Bloco Soviético. Hoje, para a geração das pessoas que estão a viver no tempo do Erasmus e viajam por toda a Europa, é difícil imaginar que visitar a Alemanha ou a Áustria era impossível. Viajar para Kamchatka era no nosso imaginário mais fácil do que ir até Viena.
A Eslováquia fazia parte, no Império Austro-Húngaro, da esfera húngara e a atual República Checa estava na austríaca. Como é que se explica que criassem um país em 1918? Havia afinidade tradicional entre checos e eslovacos?
J.A.: Sim, sim. Essa afinidade existia já desde a Idade Média, apesar de a Eslováquia fazer parte do Estado multinacional húngaro que existiu quase mil anos. Havia coexistência e lealdade dos eslovacos, sem dúvida. Mas com o surgimento dos nacionalismos modernos e a afirmação da nação húngara nesse Estado multinacional as relações começaram a complicar-se.
Ou seja, o nacionalismo húngaro acentuou a vontade de os eslovacos fazerem parte de uma outra entidade?
J.A.: Sim, sim. Ao mesmo tempo, surgiu o movimento da emancipação nacional eslovaca, durante o século XIX, mas a ideia inicial era obter mais autonomia dentro da Grande Hungria.
Mas foi natural então, em 1918, nascer um país para checos e eslovacos?
J.A.: Foi, mas eu chego lá. Depois daquele acordo austro-húngaro, em 1867, quando surgiram duas nações dominantes no império, a situação mudou. Foram fechadas as escolas eslovacas e as instituições culturais também. Então, no final do século XIX, alguns até diziam que a nação eslovaca estava à beira da morte, o que acho exagerado. Com isso começou a aproximação entre eslovacos e checos a respeito do futuro das duas nações. Também contribuiu que muitos eslovacos intelectuais estudassem em Praga, influenciados por Tomáš Masaryk, um dos autores da ideia de Checoslováquia.
Os checos tinham um tratamento, apesar de tudo, melhor no império?
S.K.: Talvez um pouco diferente, mas o problema era igual, a defesa da língua, pois na Boémia era a língua alemã a língua oficial do Império Austro-Húngaro. Entre checos e eslovacos havia a afinidade entre as línguas. Não são a mesma mas são bastante parecidas, o que ajudou no pensar um Estado checoslovaco. Outro ponto importante foi a cooperação entre os representantes checos e eslovacos no exílio nomeadamente em Paris e sobretudo nos Estados Unidos. Tanto Štefánik, que era o representante eslovaco, como, no nosso caso, Masaryk eram pessoas que viviam no exílio e já quando estava a chegar ao fim a Primeira Guerra Mundial, e ouviram que o Império Austro-Húngaro ia desintegrar-se, envolveram-se nas negociações sobre as criações dos novos países. Checoslováquia foi um de vários.
Quando ouvimos falar da Checoslováquia entre as duas guerras mundiais, é como se fosse uma sociedade especial, um país mais democrático e livre do que outros da época na Europa. Era mesmo assim?
S.K.: Acho que, de alguma forma, teve a vantagem de na Boémia, e também em partes da Eslováquia, estarem algumas das áreas do Império Austro-Húngaro mais desenvolvidas economicamente. A prosperidade ajudou a criar essa forma de governar, mas como todos os países democráticos tínhamos certos problemas de governabilidade.
É também essa a memória que tem, que aprendeu na escola?
J.A.: Sim, mas não aprendida naquela escola [risos]. Aprendi paralelamente, porque na sociedade existia muita esquizofrenia, uma coisa era o que se dizia na escola, outra coisa o que se dizia em família e com amigos.
Ou seja, a escola comunista não vos ensinava a ver essa Checoslováquia inicial como um exemplo?
J.A.: Não. Era apresentada como um país capitalista que oprimia os operários.
Mas o que ouvia em casa era diferente?
J.A.: Sim, sim. Mas volto a essa ideia de criação da Checoslováquia: ela foi evoluindo também durante a Primeira Guerra Mundial, porque a representação eslovaca do início do século não pensava num Estado independente, no máximo certa forma de federação dentro do Estado húngaro, mas com o tempo houve um grande papel da comunidade eslovaca nos Estados Unidos. Que era mais politicamente consciente. Então juntamente com os exilados checos desenvolvemos a elaboração da ideia de Checoslováquia. O presidente Woodrow Wilson dos Estados Unidos contribuiu muito para a emancipação, porque o próprio Masaryk não pensava nos primeiros anos em Checoslováquia, pensava mais sobre certa forma de emancipação dos austríacos. Mas os acontecimentos contribuíram para que a ideia da Checoslováquia como forma melhor da vida nacional prevalecesse.
Essa Checoslováquia de entre as duas guerras era mais complexa em termos de nacionalidades, porque havia uma minoria alemã , portanto era mais do que o país dos checos e dos eslovacos...
S.K.: Sim. E também tinha uma parte leste que depois ficou para a União Soviética, hoje em dia a Ucrânia. Com os rutenos, dessa região, era um país muito mais multinacional, por assim dizer.
Como é que, quando conquistam a liberdade, com o fim do comunismo, num pouco espaço de tempo, quase de repente, caminham para o fim desta Checoslováquia que aparentemente tinha uma origem muito sólida, mas que se vai separar de forma pacífica em 1993. A ideia é sobretudo dos eslovacos?
J.A.: Acho que o impulso saiu da Eslováquia. Como Checoslováquia tínhamos tido um período democrático muito curto, 20 anos, entre 1918 e 1938. Mas já na altura se sentia certa aspiração de emancipação nacional dos eslovacos.
No fundo, aproveitaram a liberdade pós-Revolução de Veludo para recuperar essas ideias?
J.A.: Sim. Na minha opinião, talvez com mais tradição democrática, sem as décadas de ditadura de partido único, até poderíamos ter mantido o Estado multinacional como acontece na Bélgica, mas depois de 1989 surgiram muitos problemas para ser resolvidos e entre eles a relação entre checos e eslovacos.
E os checos, aderiram logo a esta ideia da separação ou resistiram?
S.K.: Acho que o problema foi abordado muito bem pelo meu colega. Durante anos não foi possível desenvolver as ideias democráticas e foi limitada a discussão possível sobre isso. E, de repente, era como estar numa panela de pressão, que está a ferver e que explode se não deixarmos sair o vapor...
A pressão era grande na relação entre checos e eslovacos e para que não explodisse foi melhor a separação...
S.K.: Isso que se passou foi um efeito colateral dos regimes autocráticos comunistas e que, lamentavelmente, no caso de Jugoslávia teve consequências muito mais duras do que na Checoslováquia. Concordo que se existisse um espaço mais livre para discutir as ideias, que a Checoslováquia poderia ter-se mantido, mas é uma discussão teórica.
J.A.: Outro fator importante foi a grande diferença no conceito da transformação e transição de um regime comunista para a democracia e a economia de mercado entre os políticos eslovacos e os checos. E chegou-se à conclusão de que assim não podemos continuar juntos e é melhor separar-nos.
Mas o que estava a passar-se na Jugoslávia também fez que a vossa separação fosse mais cautelosa, mais cuidadosa, ou nunca acharam que era possível haver violência como na Jugoslávia?
S.K.: Eu acho que nunca...
J.A.: Não, não.
S.K.: Acho que os problemas históricos da Jugoslávia eram mais profundos. No nosso caso, foi uma decisão das duas representações, em 1918, o criar a Checoslováquia, um novo país; e depois, em princípio dos anos 1990, os nossos representantes políticos chegaram a acordo que temos de viver separadamente. Claro que existiam alguns extremistas, sempre existem. Mas não foi a maioria da população, porque antes da separação, e depois também, existiam laços muito bons entre checos e eslovacos.
Sentiram que na UE, quando entraram os dois países em 2004, de alguma forma a velha relação entre checos e eslovacos voltava a estreitar-se?
J.A.: Claro que ajudou às relações a adesão em simultâneo, mas quero dizer que a divisão da Checoslováquia por meios violentos nunca foi posta na mesa. Isso foi excluído desde o início. Claro que nos primeiros anos houve ressentimentos, por exemplo, na divisão da propriedade federal, mas com diálogo e paciência todos os assuntos foram resolvidos.
Muitos checos continuaram a viver na parte eslovaca, muitos eslovacos na República Checa...
J.A.: Muito mais eslovacos continuaram na República Checa do que ao contrário. E há muitos eslovacos universitários que fazem estudos na República Checa.
S.K.: Um bom exemplo da influência positiva da União Europeia foi o desaparecimento das fronteiras que depois de 1992 ou desde o princípio de 1993 começaram a construir-se entre a República Checa e a Eslováquia.
Então houve um período em que se quisessem ir de Praga até Bratislava havia uma fronteira?
S.K.: Sim.
E essa entrada na União Europeia e o desaparecimento das fronteiras voltou a aproximar os checos e eslovacos?
J.A.: Sem dúvida, voltou a aproximar em todos os sentidos. Eu lembro-me porque tenho uma sogra que é da Morávia e ela sentiu muito a divisão de 1993; ela nasceu numa aldeia, sei lá, a uns 20 quilómetros da Eslováquia, e de repente ficou eslovaca e ao atravessar a fronteira tinha de mostrar documentos, tinha de abrir o porta-bagagens. Isso afetou muitas pessoas na dimensão pessoal.
Casamentos entre checos e eslovacos é uma coisa comum?
J.A.: É normal. Continua a ser.
Cada um falando na vossa língua é perfeitamente entendível para o outro?
S. K: As pessoas da nossa geração podem porque eu até aos meus 18 anos vivi num Estado bilingue. Só para explicar: uma semana na televisão havia um apresentador eslovaco, noutra um checo...
Para terminar. Até que ponto é popular a União Europeia ainda na República Checa?
S.K.: Há que dizer que alguns dos partidos que conseguiram entrar no Parlamento nas recentes eleições têm um discurso sobre a necessidade de um referendo à UE. Mas tenho a certeza de que essas vozes estão em minoria.
E na Eslováquia...
J.A.: Essa tendência de diminuir a popularidade da União Europeia existe sim, mas a maioria da população ainda está contente e apoia.