A Tripolitânia de Kadhafi

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O Tribunal Penal Internacional de Haia, ao emitir um mandado internacional para Kadhafi, força o líder do regime líbio a continuar a combater, e a morrer combatendo, afastando-o de uma possível negociação de paz, porque, ao fazê-lo, o ditador sabe que irá ser de seguida condenado por crimes contra a humanidade e contra o seu próprio povo.

É pois de esperar que a guerra continue na Líbia, e que Kadhafi saiba aproveitar-se das históricas divisões políticas do seu país e que tornam difícil um entendimento. As disputas recorrentes entre as mais de 140 tribos são pontos que contam a favor do coronel, que para evitar conspirações contrata mercenários para combater. Dando sinais de uma grande resistência, o coronel mantém o seu bastião de poder, que não vai ser fácil de tomar porque as tribos da região de Tripoli têm privilégios que não querem perder caso os rebeldes tomem conta do seu território.

Teme-se inclusive que esta situação se mantenha mesmo sem o ditador, porque, tal como alerta Ben Ghalbon, presidente da União Constitucionalista Líbia, existe o perigo de o país ficar dividido em dois, uma situação que parcialmente já está a acontecer com a zona oeste, a Tripolitânia, debaixo do controlo de Kadhafi, e a parte este, a Cirenaica, controlada pelos rebeldes. Resta a zona de Fezzan, a sudoeste, que por enquanto ainda está sob o controlo do coronel.

Curiosamente, foi sempre da região este que partiram as rebeliões contra poderes instituídos, e foram eles os responsáveis pela unificação do território em 1951, dando origem ao Reino Unido da Líbia, um regime monárquico constitucional sob a égide de Idris al-Senussi I. Muita desta dinâmica tem partido das tribos de Cirenaica, mas também do movimento Senussia, que se diz ter sido o responsável pela instigação à jihad contra as potências colonialistas, mas também por ter apelado à união do território. Esta ordem foi fundada em 1837 por Sayyid ibn as-Senussi e é uma mistura de princípios de várias correntes teológicas islâmicas, desde o Sufismo, ao Salafismo, numa busca pela pureza do Islão. Ainda hoje, e apesar das perseguições que sofreu quando Kadhafi tomou o poder, é um movimento muito considerado e respeitado, de tal forma que actualmente se vêem muitos líbios envergando fotografias dos líderes espirituais Senussi. O próprio Ben Ghalbon é simpatizante do antigo regime monárquico constitucional.

O futuro da Líbia é uma grande incógnita, mas adivinham-se alguns cenários possíveis, sobretudo se a guerra se prolongar e Kadhafi não largar o poder. A cisão em dois é por isso uma das situações plausíveis, até porque o primeiro passo já foi dado pelos 13 países que reconheceram o Conselho Nacional de Transição, o órgão político da rebelião líbia, como o "representante legítimo" deste país. A Alemanha, a última a juntar-se ao grupo, decidiu, inclusive, abrir uma representação diplomática em Benghazi. O facto de actualmente as duas regiões terem recursos petrolíferos capazes de as sustentarem economicamente torna ainda mais concretizável esta divisão. Por outro lado, adivinha-se também o regresso à influência do movimento Senussi, num revivalismo que se teme ser de fervor islâmico. A possibilidade de se recuperar a Constituição de 1951 e de chamar um dos descendentes da antiga família real para o trono é uma das hipóteses que se tem colocado ultimamente. A suposição de que tudo seria feito sem um sufrágio prévio à população preocupa os mais atentos, mas sossegando estes rumores o legítimo herdeiro ao trono, Muhammed as-Senussi, já garantiu que o povo terá sempre de ser consultado.

Qualquer que seja o cenário futuro da Líbia, é importante assegurar uma transição democrática, para que nem a Tripolitânia de Kadhafi nem a Cirenaica dos rebeldes se tornem em bastiões ditatoriais ou em fanatismos religiosos. O futuro dos líbios pertence apenas à sua vontade e não pode, nem deve, ser imposto.

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