A tragédia dos comuns
Em 1833, o economista inglês William Foster Lloyd publicou um panfleto sobre o excesso de população em que falava do mau uso dos recursos e dos bens colectivos. Colocou uma hipótese simplicíssima, que ficou famosa: imaginemos que, numa terra comunitária (a "common land", também chamada apenas "common"), a pastagem é partilhada por vários criadores de gado, seguindo o antigo costume das Ilhas Britânicas, e que cada criador tem direito a colocar no terreno um determinado número de vacas. Se um criador colocar na pastagem mais vacas do que a conta, terá um benefício individual imediato: por cada vaca, mais lucro. E, ainda melhor, mais lucro sem a despesa de ter de prover à alimentação do animal, garantida pelo uso de uma pastagem comum. Acontece, porém, que, para obter essa vantagem individual, o ganadeiro faz que o colectivo perca, pois a pastagem será usada acima das suas capacidades, fixadas desde tempos imemoriais. Se todos decidirem agir como ele, colocando no campo mais vacas do que as permitidas (por exemplo, contratando vacas de outros criadores), o terreno ficará exaurido ao fim de pouco tempo. E, mesmo que só alguns, não todos, se mostrem gananciosos, o terreno também ficará esgotado ao fim de algum tempo. No final, todos perdem. Todos, incluindo o ganadeiro egoísta e de vistas curtas, pois se a terra ficar esgotada, sem ervas para o gado comer, as suas próprias vacas irão sofrer e talvez até morrer. Para ter mais uma ou duas vacas lucrativas no imediato, mata-se a manada a prazo.
O nome "commons", ao que parece, deriva de Boston Common, o mais antigo jardim público dos Estados Unidos, instituído em 1634. Na cidade de Boston, claro. Eis uma curiosidade erudita generosamente disponibilizada pela Wikipédia, outra pastagem comum do espírito, a maior obra colectiva da história da humanidade, feita com labor abnegado e voluntário. Adiante. A expressão "tragédia dos comuns" foi celebrizada pelo biólogo e filósofo ecologista norte-americano Garrett Hardin num famoso artigo publicado em 1968 nas páginas da prestigiada Science. Nesse artigo, intitulado precisamente "The tragedy of the commons", Hardin alertava para os riscos de sobrepopulação do mundo, numa linha malthusiana em voga nos finais dos anos 1960 e nos alvores da década seguinte, em que muitos falavam nos "limites do crescimento" (é esse o título de um célebre relatório patrocinado pelo Clube de Roma em 1972) e pugnavam por um drástico controlo de natalidade, incluindo no Ocidente desenvolvido. Hardin criticava os abonos e os apoios concedidos pelo Estado social, considerando que potenciavam o excesso de população, e chegava a considerar que a família - ou a decisão de a constituir e de ter filhos -, ao invés de uma questão pessoal e privada, deveria ser tratada como um assunto público, sujeito aos desígnios de uma racionalidade superior, um Big Brother anticoncepcional.
O tempo veio mostrar que, pelo menos no Ocidente, não só as previsões catastróficas quanto ao excesso de população não se verificaram como existe até um gravíssimo e alarmante défice de natalidade, sendo Portugal, como sempre, um caso de estudo pelas piores razões. Estima-se que, em 2100, a Europa irá decrescer para 653 milhões de habitantes, enquanto África vai explodir para 4,4 mil milhões de seres humanos. Portugal é dos países que mais encolhem e, no final do século, seremos não mais do que uns meros seis milhões de pessoas, excluindo outros tantos turistas chineses.
Se muito do que Hardin disse ou previu não tem razão de ser, o conceito de "tragédia dos comuns" criou raízes e é hoje usado para designar múltiplas situações de utilização abusiva de recursos colectivos, como sucede com o spam do correio electrónico: para benefício de uns poucos, dos difusores das mensagens em massa, geralmente sob a forma de publicidade não solicitada, entopem-se os canais de comunicação na internet, obrigando a recorrer a software específico e, no final, aumentam os custos materiais e imateriais para todos. Para que uns afortunados turistas possam passear de tuk-tuk, o trânsito do centro de Lisboa anda um caos pegado. O mesmo se passa com os que deixam lixo nas praias ou nos jardins públicos, numa atitude bárbara de desleixo que acaba por prejudicar toda a gente, ou dos que, por um estúpido e efémero gozo, grafitam as paredes e rabiscam edifícios particulares, equipamentos públicos, monumentos belos, antiquíssimos.
O caso mais evidente, como é óbvio, é o do clima, e das suas dramáticas alterações. Só um exemplo, bem conhecido: a opção individual pelo automóvel particular provoca filas e engarrafamentos colossais, acabando por afectar a utilidade e até o conforto que cada qual retira da sua viatura particular. Com 42 minutos de fila por dia, Lisboa é a cidade ibérica com mais trânsito, Madrid e Barcelona incluídas. Isto para não falar dos efeitos difusos e colectivos: um relatório recente do Parlamento Europeu mostrou que os carros são responsáveis por 60,7% do total das emissões de CO2 em transportes rodoviários da Europa, e que essas emissões, ao invés de diminuírem, estão a aumentar desde 2017.
É claro que, levado às últimas consequências, o argumento da "tragédia dos comuns" nos impediria de fazer quase tudo, e deveríamos, a bem da humanidade, deixar de tomar banho para racionar a água, não fumar ou beber para poupar os hospitais e o sistema de saúde, viver na escuridão para não consumir electricidade, largar os aviões e as viagens por causa dos gases, abandonar os prazeres da carne e também dos vegetais e tudo mais que restasse, pois tudo, ao cabo e ao resto, acaba por ser um dispêndio para o planeta e para os seus limitados recursos. A alternativa mais radical foi sugerida há dias por uma ex-dirigente do PAN, que escreveu no Facebook: "Há gente a mais neste planeta. A maior parte desta não vale os recursos que consome. Cada vez mais tenho nojo destes semelhantes em espécie com que me vou cruzando e sou obrigada a partilhar o ar que respiro. Que venha uma praga que limpe esta merda de gente. Dixit". Dixit, mas dixit mal - e o PAN logo veio, e bem, demarcar-se desta enormidade.
Tem andado nas bocas do mundo a decisão da reitoria de Coimbra de retirar a carne bovina das ementas das cantinas universitárias. A medida, semelhante à já tomada noutras academias estrangeiras, não implica perseguir a estudantada que trinque hambúrgueres nos velhos claustros, pelo que falar em "proibição" é um malévolo exagero, como exagerada e disparatada é a alusão a "ditadura", argumento sempre usado nestas ocasiões, em tudo igual ao esgrimido há anos a propósito da restrição de fumar em locais públicos e espaços fechados. Curiosamente, a comunidade académica aplaudiu o Magnífico, e as vozes críticas vieram de quem nunca entrou nem entrará nas cantinas académicas, doravante descarnadas.
Quer dizer, quem vai deixar de comer bife não se queixou, até saudou e louvou, e os que lapidaram o Sr. Reitor pelo seu "paternalismo" deveriam interrogar-se se não serão eles, afinal, os piores paternalistas: em nome da "liberdade", querem impor a carne da vaca a quem não a deseja comer, imiscuem-se no prato dos outros, com a agravante de se terem posto a falar em nome de gente alheia, gente que até aplaude a medida. Dizem outros que o reitor foi inconsequente, contraditório, pois expulsou a carne mas manteve o leite e seus derivados, todos vacuns. É estranho que se verbere o radicalismo do reitor e, ao mesmo tempo, se o vitupere e castigue por não ter sido ainda mais inflamado e ainda mais radical, ao não ter lançado completo anátema sobre tudo quanto cheire a estrume, como se não fosse mais avisado actuar, aqui como noutros planos da vida, com gradualismo e elementar prudência.
Chegou até a dizer-se, santinha ignorância, que as vacas fazem tanto mal ao planeta como os porcos ou as cabras, como se não se soubesse há muito que o gado bovino é responsável pelas maiores emissões de carbono na atmosfera: comer um quilo de bife equivale a andar 150 quilómetros de automóvel. Houve até uma dirigente partidária que proclamou alto e bom som que proibir a carne da vaca era o mesmo que proibir as couves aos vegetarianos, esquecendo que, além da questão ambiental, há recomendações da Organização Mundial da Saúde e da nossa Direcção-Geral da Saúde a aconselhar, como medida de prevenção do cancro, o consumo moderado das carnes vermelhas.
Defendeu-se o reitor, e bem, com as regras da contratação pública, que o obrigam a adquirir no mercado as alcatras mais baratas, ou seja, que o impedem de comprar carne de primeira, bio ou maturada, criada em livres pastagens, massajada niponicamente ao som de Mozart e Beethoven. Ao que se poderia acrescentar que, sendo subsidiado o preço de cada refeição, a ideia de que o aluno tem "direito" ao que mais aprecia no prato, caviar, trufas francesas e assim, é algo que, convenhamos, não só não faz grande sentido como contraria os mais elementares pressupostos de um ideário liberal, adverso a subsídios do Estado e demais mordomias públicas.
Os que fustigam a medida por ela ser ideológica - e ideológica de "esquerda" - também deveriam reflectir mais um pouco. Tornar o ambiente e as alterações climáticas numa "causa fracturante", num feudo e num monopólio da esquerda é o pior que a direita pode fazer (mas está a fazer). O futuro do planeta não é, não deve ser, sujeito a lógicas clubísticas ou a campeonatos esquerda-direita, pois o que está em causa, a cada dia mostrado em sucessivos relatórios e contínuas notícias, é demasiado grave para ser tratado de maneira tão básica e maniqueísta.
A emergência climática exige a mobilização de todos, do monárquico ao republicano, de Salazar a Cunhal, do idoso centenário às muitas Gretas domésticas. Se teimar na cegueira, se alinhar com negacionismos irresponsáveis acéfalos, a direita, portuguesa e mundial, será afastada do poder por muitos e longos anos, até porque as gerações mais novas, independentemente de cores e de partidos, se mostram alinhadas em uníssono na defesa desta casa comum. Atente-se, para mais, que o nosso reitor Amílcar não foi, de modo algum, um radical. A sua medida, como o próprio disse, é simbólica, mas não revolucionária.
Não por acaso, o que os mais extremistas sustentam anda completamente ao invés do que agora vai ser instituído na Lusa Atenas. Por exemplo, a influente Naomi Klein, autora de Tudo Pode Mudar. Capitalismo vs. Clima, anda a dizer em entrevistas que "as nossas decisões individuais não têm qualquer efeito face às mudanças de que precisamos" (Público, de 19/9/2019). O que ela quer sabemos nós, não são decisões individuais, não é menos plástico doméstico ou moderação na carne rubra. O que ela quer é muita revolução nas ruas, muita luta de classes, empresários despidos nas praças, fuzilados sumariamente por crimes contra a humanidade. Pois a equilibrada medida de Coimbra está nos antípodas de tudo isto: sem impor o veganismo, promove a mudança compassada e gradual dos comportamentos individuais, é pausada e reformista, não revolucionária. O Sr. Reitor, que eu saiba, não reclamou o arraso do McDonald's da Baixa, nem exigiu pelourinho para os capitalistas das Beiras.
Nesta tragicomédia da vaca, o que mais impressiona e confrange é a ignorância de quem opina, e sobretudo a resistência a uma mudança que, queiramos ou não, vai ter mesmo de acontecer. Em França, por causa da descarbonização, armou-se a barracada dos gilets jaunes, com mortos e feridos, e a coisa perdura, sem paz à vista. Avizinham-se, pois, tempos de grande tensão e até bélicos conflitos por causa do ambiente, da escassez de água e de comida. Os 30 milhões de habitantes da grande Jacarta terão de se adaptar à mudança, bem mais dramática do que não haver novilho no prato: por estar literalmente a afundar-se, a capital indonésia vai ser transferida para a ilha do Bornéu. Trinta milhões de pessoas, leram bem. Mais de 90 cidades costeiras norte-americanas já estão a sofrer inundações crónicas, número que irá duplicar até 2030, e três quartos das cidades europeias serão também afectadas severamente, garante o Fórum Económico Mundial. Enquanto isso, os quatro milhões de habitantes da Cidade do Cabo, África do Sul, viveram uma seca sem precedentes, com um limite diário de 50 litros por pessoa. Por cá, um vendaval no Mondego por uma questão de bitoques - e bitaites. O que há de mais trágico na tragédia dos comuns é nunca estarmos preparados para ela.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.