A surpresa Hollande

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1 A Direita Europeia, ultra-conservadora, neoliberal e populista, não esperava a derrota eleitoral de Sarkozy. Tudo fez para diminuir Hollande, apresentado como um político sem carisma, mole, hesitante, sem ideias claras. Enganou-se redondamente. Hollande ganhou o duelo que teve com Sarkozy, na televisão francesa, mostrou uma preparação económica inesperada, um bom conhecimento da tragédia que vive a União Europeia e do que é preciso fazer para sair dela. Ou seja: criar um novo paradigma de desenvolvimento. O que os dirigentes europeus, institucionais ou nacionais, por preconceitos ideológicos, nunca quiseram ver nem, muito menos, fazer. São responsáveis por isso.

Contudo, a vitória de François Hollande, o entusiasmo popular que provocou, não só em França mas por toda a Europa, o desafio que fez à chanceler Merkel, que o convidou, no dia seguinte às eleições, para um encontro em Berlim, criou um vento de mudança que poderá vir a abrir - espero - uma nova fase do projeto europeu, dado o beco sem saída em que se encontram Estados tão importantes a nível europeu, como: a Itália, a Espanha, o Reino Unido, a nova França, obviamente, e a própria Alemanha, que está a mudar significativamente. Não tenhamos dúvidas. Porquê? Porque os sociais-democratas alemães aperceberam-se da necessidade de mudança, bem como os Verdes e o partido "pirata", uma nova organização cívica que surgiu mais ou menos à Esquerda, subitamente, com um novo dinamismo e energia. A chanceler Merkel averbou, de resto, no último domingo, na Renânia do Norte- -Vestefália uma nova derrota pesadíssima, no seguimento das várias que tem vindo sempre a ter.

Curiosamente, na passada sexta-feira, dos Estados Unidos, que têm procurado moderar a crise financeira, que se iniciou na Wall Street em 2008 e, lentamente, feito crescer o emprego, chegou-nos a notícia terrível de que o banco J.P. Morgan, tão considerado, se meteu em especulações muito arriscadas que o fizeram perder, pelo menos, dois mil milhões de dólares. O seu principal responsável, Jamie Dimon, foi quem deu a notícia e aproveitou logo para pedir desculpas. Mas para que valem tais desculpas? Os acionistas estão furiosos, visto tratar-se de uma notícia que está a ter repercussões muito negativas nas bolsas, sem exceção das europeias, num momento em que os bancos europeus - e os suíços incluídos - estão a passar um mau momento. Que o digam os espanhóis, os ingleses, os italianos, os franceses, os nossos e, atenção, os próprios alemães... Conclusão, a crise global está longe de ter abrandado ou de estar em vias disso. E sabem os leitores porquê? Porque os responsáveis que a provocaram e provocam são os mesmos que estão ainda ao leme do poder e, portanto, continuam impunes e não querem mudanças, sonhando que podem resolver a crise global mantendo os mesmos comportamentos neoliberais, pondo o dinheiro e o negocismo acima das pessoas. Realmente não podem. Mas insistem nas medidas de austeridade, ignorando que, com elas, cada vez mais, agravam a recessão - como se tem visto - e fazem crescer o desemprego em flecha. Por toda a União Europeia, nos Estados da Zona Euro ou não, os mais poderosos são agora os mais atingidos, como é o caso da Grã-Bretanha, em que o partido Tory, vitorioso há tão pouco tempo, perdeu flagrantemente as eleições municipais e a crise é cada vez maior.

Ora, François Hollande, como bom socialista e com uma formação académica e política excecionais, antes e depois do seu discurso de vitória, declarou, sem papas na língua, que com a austeridade não se vai a lado nenhum, como se tem visto na Grécia e por todo o lado, incluindo Portugal. É, pois, urgente mudar de paradigma, para pôr termo à crise, como tenho vindo a dizer ao longo destas crónicas, restabelecendo a confiança das pessoas, dos Estados e das instituições europeias, na medida do possível, pondo os mercados na ordem, acabando com os "paraísos fiscais" - como já foi prometido pelo Governo português, mas não cumprido - e restabelecendo o Estado social solidário e o estado de bem-estar para todos. Sem isso, espera-nos a degradação do projeto europeu, a democracia, em começo de crise, claudica, como já se vem sentindo, e os europeus, perdida a solidariedade e confrontados com velhos e novos conflitos - e talvez guerras - não auguram nada de bom... O desemprego é, de resto, mau conselheiro, começa pela revolta e acaba pela violência...

2 Portugal, onze meses depois

Em Portugal, onze meses depois de se ter evitado, in extremis, a bancarrota, o Governo, de coligação, (PSD/PP), saído de eleições e apesar das promessas feitas, está a deixar isolar-se, sem rumo certo nem estratégia definida. É grave. Os portugueses, na sua esmagadora maioria, estão profundamente descontentes. O desemprego sobe, já vai em 15,5% e parece, infelizmente, crescer mais. Não há investimento nem crescimento económico. As médias e pequenas empresas estão a falir em cadeia. Mas as grandes, das que restam - e os próprios bancos -, estão em visíveis dificuldades. As autarquias, mesmo as do PSD, estão bastante descontentes com os cortes que a nova lei lhes pretende introduzir. A concertação social deixou de funcionar. Alguns ministérios, dependentes de um só ministro, parecem ausentes. Nada nem ninguém sabe do que se ocupam. O Estado social - que tanto custou a construir - parece ser, para o Governo, "um inimigo a abater". Há cortes muito graves e sensíveis nos hospitais, no domínio do trabalho, da segurança social e do ensino. Os cortes nas universidades e no domínio da cultura são de uma gravidade imensa para o nosso futuro. Elites que tanto nos custaram a formar não têm outro caminho senão emigrar. É triste! A justiça está paralisada e cada vez mais desacreditada, com alguns juízes e magistrados (felizmente poucos) a discutir política, nas televisões, sem tempo para despachar os processos que, por isso, prescrevem, quando os ingénuos supõem que enfim iam ser julgados... Curiosa maneira de fazer justiça.

O Governo não comunica com os portugueses o que agrava o descontentamento e a incompreensão de uma situação que só tende a agravar-se. Não admira assim que os suicídios cresçam, como nunca antes sucedera, como, aliás, a criminalidade e os portugueses, à semelhança do que se passa com outros Estados, começam a descer à rua, pacificamente, para expressar a sua indignação e mal-estar, como tem acontecido em Estados próximos de nós, mas com inesperada violência. O povo português, felizmente, é pacífico. Mas o Governo, com o seu silêncio ou incapacidade, não deve provocar, com frases infelizes, que o desespero das pessoas passe além dos limites e se torne violento. É uma responsabilidade que cabe, essencialmente, aos governantes.

Pelo menos, o ministro das Finanças, cúmplice da troika, antes de propor novas malfeitorias à população - que já está a sofrer tanto - teve a ideia divertida de ir contar histórias da carochinha a um grupo de crianças, explicando- -lhes a crise, como se fosse o lobo mau. É muito pior do que isso, infelizmente. Mas o gesto, senhor ministro, foi humano, divertido e muito simpático. Valha-nos isso...

3 Celebrações de um centenário

Na passada sexta-feira, a Faculdade de Medicina de Lisboa, Egas Moniz, organizou uma sessão, no dia da faculdade, comemorativa do centenário do nascimento do professor João Pedro Miller Guerra, um grande médico, académico ilustre, católico progressista, como se dizia então, e um cidadão exemplar, que participou ativamente como deputado muito crítico da chamada ala liberal da "Primavera caetanista", de que veio a demitir-se com um discurso célebre. Depois da Revolução dos Cravos, foi deputado socialista, às Constituintes, pelo círculo eleitoral de Bragança.

Entre médicos e cientistas, fui convidado, ao lado de Pinto Balsemão, meu querido amigo, para dizer algumas palavras sobre o político Miller Guerra, que foi o único deputado, no tempo do caetanismo, a renunciar ao seu lugar, como disse acima, por causa do assalto da PIDE à Capela do Rato, onde se encontravam duas ou mais dezenas de católicos (mulheres e homens) a rezar em favor da liberdade. Imagine-se!

Foi uma honra, para mim, que os organizadores da sessão se tivessem lembrado de me convidar para dizer umas breves palavras. Os dois filhos (um eclesiástico) e a filha estavam presentes, tendo o mais velho usado da palavra em nome da família para encerrar a sessão.

Conheci Miller Guerra quando acabava de regressar da minha deportação em São Tomé, por intermédio de Pinto Leite ou de Melo e Castro, não me lembro bem. E causou-me logo uma grande impressão. O general Spínola, então presidente da Junta de Salvação Nacional, dissera-me, logo no nosso primeiro encontro, que tinha a ideia de convidar Miller Guerra para primeiro-ministro do I Governo Provisório. Achei bem. Mas acrescentou que a sua intenção não se concretizara, porque Miller Guerra lhe dissera que a sua primeira prioridade era acabar com as guerras coloniais e conceder, rapidamente, a autodeterminação às colónias que nos faziam a guerra, como a ONU exigia. Era exatamente a ideia que eu tinha quando regressei do exílio em França e que vim a praticar - não tão depressa como desejava - conforme me foi possível na complexidade daquele tempo inicial...

Miller Guerra foi um homem de bem, no mais rigoroso sentido da palavra, de valores e de causas. Deixou uma obra considerável, quer como cientista quer como político. Honro-me de ter sido seu correligionário e amigo.

4 Faleceu Bernardo Sassetti

Inesperadamente, chegou-me a comovente notícia da morte de um músico de uma craveira excecionalíssima e de um homem de grande bondade. Conheci-o muito mal e, como não sou melómano, por ter um ouvido duro, poucas vezes o ouvi tocar. Conheci melhor seu pai, católico progressista, homem de grande carácter, descendente de Sidónio Pais, cujo nome sempre usou.

Mas sei, por vários amigos comuns, que Bernardo Sassetti era um ser admirável, de grande qualidade humana. Todos os que foram seus amigos ou simples admiradores o dizem, com a mesma insistência. Acompanho-os, por isso, na sua dor. O seu falecimento representa uma enorme perda para Portugal. Morreu aos 41 anos, na flor da idade e quando tanto se esperava do seu imenso talento.

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