Um comentário ao correr da pena ao livro de Robert M. Fishman, Práctica democrática e inclusión (edição espanhola). Los Libros de La Catarata. Edição Kindle..Publicou-se recentemente em espanhol a tradução do livro do politólogo americano Robert M. Fishman Práctica democrática e inclusión (Los libros de la Catarata 2021), em que ele compara as democracias espanhola e portuguesa e coloca, em síntese, a hipótese de que a "origem revolucionária" da segunda, na Revolução de Abril, outorgou às instituições e comportamentos políticos em Portugal uma maior "inclusividade" e capacidade de "integração" das diversas franjas da sociedade no sistema, do que a que se encontra em Espanha procedente da "rutura negociada" de 1978..O livro publicado em inglês em 2019 mereceu, então, este comentário de Bárbara Reis no diário Público: "Em Portugal a ditadura acabou com uma ruptura e em Espanha com um processo de reforma. É por causa do contraste entre estas transições que hoje os políticos dos dois países entendem a democracia de forma diferente." Pois bem, em minha opinião aconteceu justamente o contrário... A democracia em Espanha foi produto de uma poderosa mobilização da sua sociedade, que fez claudicar a ditadura e levou a uma rutura que culminou com a legalização do Partido Comunista, enquanto que em Portugal foi produto de um golpe de Estado que desencadeou, a partir do poder, uma reforma que conseguiu logo mobilizar a população. De facto, como o próprio Fishman diz no seu livro, enquanto a população portuguesa acompanhava a reforma iniciada pelos militares portugueses, em cada ano da transição espanhola houve, pelo menos, 20 vítimas mortais no confronto com o poder estabelecido. De forma que se, hoje, os políticos entendem a democracia de formas distintas - ideia que partilho -, isso deve-se fundamentalmente a outras causas..A existência de uma maior coesão, inclusividade e ausência de conflito na democracia portuguesa, do que na espanhola, é um facto, mas creio que as razões estão longe de serem atribuíveis aos processos de transformação em ambos os países e tem mais que ver, digo-o com afeto e admiração por Portugal, com "o caráter" e as "virtudes" de cada povo. O próprio autor do livro, Fishman, tem dificuldade em sustentar a sua hipótese quando traz à colação outros processos revolucionários como o da Nicarágua e o seu sistema político atual..É evidente que uma democracia é tanto mais inclusiva quanto é mais capaz de gerir o conflito e as sensibilidades sociais expressas à margem das instituições formais do sistema político. Fishman, não obstante, tende, no seu livro, a identificar essa gestão da sensibilidade social primordialmente com a gestão das "manifestações" na rua, especificamente diante do Parlamento (proibidas em Espanha e autorizadas em Portugal) e com a origem de um sistema político de um ato "revolucionário" e fundador, o que é simplificar e distorcer o debate. Com estes parâmetros, a democracia americana atual poderia considerar-se como pouco inclusiva, por não tolerar a manifestação dos trumpistas diante do Congresso e posterior assalto..Para além disso, no livro de Fishman sente-se muitas vezes a falta de uma análise rigorosa da vitalidade das associações intermédias entre o cidadão e o poder político (associações de moradores , sindicatos, organizações empresariais, ONG, instituições culturais, etc..) em Portugal e em Espanha, bem como o seu papel na tomada de decisões políticas. Tão pouco se analisa a evolução da abstenção nas eleições de Portugal e Espanha, bastante mais pronunciada no primeiro país. São todos indicadores do nível de "inclusividade" do processo político. Em 1976, nas primeiras eleições legislativas votaram 84% dos eleitores portugueses. Essa participação tem declinado desde então até se situar, em 2019, em 48,6% e, em 2022, em 52,19%. Espanha, em contrapartida, tem mantido uma participação na ordem dos 70% (desde os 68,04% de 1979 até 69,88%, em 2019, com a maioria dos dados acima dos 70% ao longo dos anos)..Por outro lado, a leitura que Fishman faz dos "relatos" da transição espanhola e de acontecimentos recentes (muito claramente, no caso do desafio à democracia de 78 pelo independentismo catalão) e a que faz também dos mitos fundadores da democracia portuguesa (a Revolução dos Cravos), coincidem em grande medida com os relatos dos independentistas catalães e da ala esquerda do Partido Socialista português. Ambos constituem relatos parciais que não servem para fundamentar uma hipótese como a proposta no livro. O facto de o golpe de Estado em Portugal (alguém duvida de que foi um golpe de Estado?) ter sido dirigido por capitães não significa, de modo algum, que graças a ele se tenha produzido, no conjunto da sociedade portuguesa, uma desierarquização maior do que a existente em Espanha. De facto, tanto antes, como depois, dos processos de mudança política dos Anos 70 a sociedade espanhola tem estado muito mais "mobilizada" e motivada para participar do que a portuguesa (bastaria para defender este dado recordar acontecimentos como a chamada Movida Madrileña, as mobilizações juvenis do 15 M ou as recentes grandes mobilizações feministas em Espanha sem paralelo em Portugal, nem no resto da Europa) ..Há, por outro lado, um paradoxo nesta particular "memória histórica" sobre os processos democráticos que tiveram lugar em Portugal e em Espanha na década de 70. A realidade é que, enquanto em Portugal a democracia foi trazida por elites procedentes do aparelho de Estado e, mais concretamente, do Exército como única solução para a tragédia da Guerra Colonial (um golpe que, a partir do poder estabelecido, conseguiu associar grandes franjas da população), em Espanha sucedeu o contrário: foi a mobilização bastante generalizada da própria sociedade já desde os Anos 60 (da classe operária aos intelectuais, estudantes e associações de moradores) que tomou o poder levando o regime franquista a claudicar, "tornando normal o que, ao nível da rua, era simplesmente normal", na frase feliz do presidente do governo, Adolfo Suárez..Em Espanha, antes da mudança de regime, existia já um poderoso movimento democrático que conseguiu ocupar espaços públicos e estruturar-se fundamentalmente em torno do partido eurocomunista, o PCE, enquanto em Portugal os comunistas continuavam a defender na mais estrita clandestinidade o regime soviético (ainda o fazem) e à sua esquerda havia movimentos, bastante poderosos na época, que tinham como ideal o regime chinês. Nada que se parecesse com a oposição democrática existente em Espanha, pelo menos não com a mesma intensidade e extensão..O nível de estabilidade e inclusividade das democracias espanhola e portuguesa tem em minha opinião outras causas. Está relacionado mais com a homogeneidade ou heterogeneidade nacional dos dois países e com o caráter, as tradições e os hábitos de conduta marcados por um caminho histórico de muito longo prazo. Em resumo, tem mais que ver com as "virtudes" e "defeitos" que a História (toda a história, não só a recente) trouxe aos seus habitantes..No caso português está relacionada com a aventura no mundo de um povo navegante, a sua necessidade de auto-afirmação em relação a um país vizinho que "o encerra" geograficamente , a influência da racionalidade anglo-saxónica, etc., e com a própria estrutura do país, uma nação de dez milhões de habitantes que na sua maioria vive na costa e nas cidades dotadas de elites muito bem preparadas e muito homogéneas. "Portugal é Lisboa e o resto é paisagem", dizem alguns portugueses..No caso espanhol tem que ver, entre outras causas, com a memória do trauma coletivo da Guerra Civil. Fishman sublinha, a propósito, como na sociedade espanhola já prevalecia, antes da transição, uma narrativa da necessária "reconciliação nacional", que, por certo, presidiu à política do único partido existente realmente na oposição a Franco, o eurocomunista PCE. E tem que ver também com o caráter secular áspero e conflituoso dos espanhóis (o "engole-a, engole-a, cão" que cantavam os liberais contra os conservadores no vaivém de Constituições do século XIX espanhol); e, finalmente com a enorme heterogeneidade e complexidade do "ser espanhol" (a entelequia de um país de países ou uma nação de nações, que é como falar de um clube de futebol de clubes de futebol); um tema, por certo, não-resolvido, e que condicionou e continua a condicionar hoje com muito maior impacto as práticas democráticas em Espanha..Quando, no outono de 2017, cheguei, como conselheiro de Comunicação da Embaixada de Espanha em Portugal, ao país vizinho, coincidindo então com as eleições autárquicas em Portugal e com a tentativa de golpe de Estado dos independentistas catalães contra a democracia em Espanha, surpreenderam-me dois factos: primeiro, que em todos os encontros políticos (especialmente nos do Partido Comunista) se encerrassem os discursos com a bandeira portuguesa e um sonoro "Viva Portugal!", algo impensável em Espanha; segundo, a tendência da esquerda do Partido Socialista e de muitos meios de comunicação (especialmente as televisões, mais dadas a apresentar imagens do que a fazer análises ou contrastar dados) para "comprarem" o relato independentista do que sucedia na Catalunha - em lugar de uma revolta dirigida a partir do poder, por classes e setores privilegiados do poder, era produto da ação de "uns bravos cidadãos, progressistas e democratas contra um país praticamente franquista"..Nessas opiniões creio que se expressava (e assim continua) a alma profunda desse grupo de portugueses, assombrado pelos fantasmas de 1640, que infelizmente continua a ver Espanha , sob um ponto de vista estreitamente nacionalista, como "o inimigo do lado", "a dominadora Castela", o "império universal"; e que mistura esse "sentimento erradicável" com alguma bagagem ideológica extrema, desde um "anticolonialismo" desfasado, a um ecologismo radical. Atrás dessas "causas" aparece sempre a animosidade contra o vizinho "maior", do mesmo modo que remexendo no fundo dos movimentos de extrema-esquerda bascos ou catalães, deparamos com a sua verdadeira razão de ser: o "híper-nacionalismo" e nada mais. Por tudo isso, tendo a pensar que o peso da História recente na configuração das democracias espanhola e portuguesa tem mais que ver, no caso espanhol, com a memória e com os traumas e consequências da Guerra Civil e o desejo de superá-los, do que com a "rutura negociada" de 1978; e no caso português, mais com a herança da Guerra Colonial e a recuperação de um sentimento patriótico democrático, do que com o golpe de Estado dos capitães. Evidentemente que os processos que construíram a democracia em ambos os países constituem também fatores a ter em conta, mas em nenhum dos casos se podem considerar decisivos. Antes pelo contrário. Estes episódios são a consequência de outros "antecedentes"..E se os processos políticos recentes têm influência - e logicamente têm -, parece-me mais pertinente analisar as consequências do que Fishman chama os "desfechos" da Revolução dos Cravos e da Transição de 1978. Fishman entende que o desfecho da Transição espanhola consiste na rápida e profunda transformação do novo sistema de partidos nas eleições de 1982 e o forte triunfo do PSOE; e considera também a reprivatização em 1989-1990 das empresas nacionalizadas durante a revolução portuguesa (graças ao acordo do PSD no governo e os socialistas para modificar a Constituição) como o desfecho dessa transição. Esses desfechos, sim, determinaram, em minha opinião, o futuro das nossas democracias..Doutor em Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid e jornalista.