A revelação de uma sublime e talentosa "poeta-coreógrafa"

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Esta primeira obra poética (em livro) de Maria Augusta Silva convoca-nos, desde logo pelo título e pela imagem da capa (numa remissão para um famoso quadro de Matisse), para uma "dança" profundamente metafórica e polissémica. Com efeito, o título Dança de Matisse é muito mais do que uma mera remissão estética ou caução de bom gosto é um portal para todo um universo pessoal onde as noções dos corpos irmanados, comunicantes e unidos são metáfora de um intenso desejo de comunhão, cooperação, coreografia e holismo redentor. Estamos, sem dúvida, perante uma poética que denota uma preocupação muito centrada no corpo e no corpóreo - não tanto na sua dimensão jubilosa, extática ou juvenil, mas mais no seu "caos", nas suas "crateras". É claro que o "corpo" de que fala a poesia de Maria Augusta Silva é um corpo feito de "matéria sublime" - dir-se-ia também, para além do corpo dos "músculos consumidos", um corpo subtil, como se, no fundo, a autora nos sugerisse que somos todos uma espécie de somatizações de um deus.

Mas neste elogio do "corpo indecifrável" que é Dança de Matisse percebemos uma certa rejeição de todas as formas demasiado abstractizantes do divino, como se a poeta nos quisesse propor uma visão essencialmente imanente e física de Deus. Por isso diz "Nada disto se dissolve em metafísica/ Temos/ um arco e uma flor. E isso é que é/ divino". O próprio estilo poético está longe das abstracções rarefeitas, procurando, acima de tudo, uma constante interligação entre "toda a imaterialidade da beleza" do mundo interior com um real quotidiano, feito de coisas simples onde se encontram pequenos consolos e redenções diários, e de uma certa domesticidade no sentido em que a encontramos, por exemplo, em Sylvia Plath. Atentemos no poema Licor de Hortelã, onde se pode sentir a noção de uma efemeridade e exaustão corporais lado a lado com um licor algo metafísico "São nossas as bocas derramadas/ sobre o corpo/ sedes de alvoradas em que negamos/ o cansaço/ e um licor de hortelã se descuida/ nas estrelas./ São nossos os corpos coalhados/ de um espanto/ que nos detém no sobressalto/ da queda". Embora não estabelecendo comparações entre imaginários, a verdade é que estes "corpos coalhados" nos lembram o "corpo espacejado" de Nava, outro poeta para quem o corpo, e sobretudo as suas vísceras, espelham o céu.

Nestes poemas sempre muito breves (na linha da característica brevidade dos poemas de um Albano Martins ou de um António Osório), onde sentimos que Maria Augusta Silva põe tudo quanto é mesmo nos mais ínfimos e concisos que escreve, há sempre uma boa dose de risco, pois um simples vocábulo deslocado ou desfocado poderia enfraquecer um poema. Mas a autora tem um domínio quase perfeito desse punho fechado ou "ponto sideral" que é o poema breve, bem como o raro dom de dizer o máximo no mínimo (ou de se dizer maximamente na mínima palavra). Esta é, de facto, uma poética que aposta tudo no "poema mínimo", no fulgor da palavra, na rapidez sintética de quem se diz todo de um só fôlego e numa coesa unidade que se constitui contra os "fragmentos do incerto". Fragmentos esses, sejam os do nosso mundo interior "coalhado", sejam os do "caos do corpo", que se pretendem transcender através de todas as "danças", quer as que unem os "corpos ilimitados", quer aquelas que representam uma metáfora da escrita - a escrita poética, e não só, como uma espécie de coreografia onde as palavras são como sensuais bailarinos que cabe à autora, como "coreógrafa", harmonizar e cadenciar na justa medida da dança cósmica. E em Dança de Matisse, Maria Augusta Silva revela-se uma poeta-coreógrafa deveras talentosa. A exemplificar esse talento está um poema como Insubmissos "Dias tenho em que me afundo/ na terra/ como toupeira escavando sonos/ longos./ Pertenço a esse reino de procura/ esperando/ encontrar dálias na tua urna. Dálias/ e a sinfonia/ guardada na caixa verde, fecunda/ identidade/ do amor que nos fez insubmissos".

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