À procura dos objetos perdidos

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Sendo homem de jornais como Citizen Kane, mas menos abastado, também tenho suspiros, mas mais prosaicos. Não digo «rosebud!» como Orson Welles ao morrer, pensando em trenós da infância, mas já me apanhei a dizer «manivela!» com saudades. De uma das vezes, o taxista, tendo ouvido o meu gutural «manivela!», olhou para trás, viu a minha mão direita à roda, e disse: «Carregue mas é no botãozinho!» Como eu tivesse, de novo, sussurrado «manivela!» (também no filme houve dois «rosebud!») e não me interessasse em abrir a janela, só estava saudoso do objeto perdido, o motorista passou a corrida a lançar-me cautelosos olhares pelo retrovisor. No fundo era dos meus: também não largo o retrovisor. Confesso, sou um homem de nostalgias, ferido por todas as perdas do passado, como as manivelas para subir e descer as janelas dos automóveis.

É velho? Ou melhor, é do tempo do antigamente? Então, compro. Ah, os livros com folhas por cortar! Perda imensa que acarretou outra: a das faquinhas para abrir livros com folhas por cortar. Vivo no terror do fim das rolhas de cortiça. Não só porque gosto de vinho mas pela hecatombe que esse fim traria: o da rolha, o do saca-rolhas e o de um dos sons cavos mais belos do mundo («plôot!»). O olho verde que anunciava nas velhas telefonias a sintonia perfeita comove-me como o olhar esperto de um garoto. As galinhas poedeiras em plástico, amarelas e brancas, que, carregadas, fazem sair um ovo, levam-me à beira das lágrimas. Apesar de geralmente sombrias, as lojas de antiquários só me veem entrar de óculos escuros, tal é o medo que tenho de passar por ridículo ao dar com uma Kodak com fole.

Um dia, repórter na vila de Munhango, abandonada durante a guerra civil angolana, guerrilheiros da UNITA levaram-me pelas ruas desertas. «Pisa só onde a gente pisa!», alertaram-me, por causa das minas. E eu lá fui, pé ante pé, ordeiramente. Foi quando vi, a dois metros do trilho indicado, um pedal de máquina de costura. Sem pensar, desviei-me, apanhei-o e passei os dedos pelas letras a ferro forjado - O-l-i-v-a - iguais às tanto pisadas pela minha mãe na minha infância. Felizmente de explosiva só a nostalgia.

Já tenho saudades até do tempo em que a internet não tinha Facebook nem Twitter. Mais, chego a ter saudades de amanhã. Há dias, li um relatório do Citigroup dizendo, caso continuasse a baixar o número de fumadores, que os cigarros apagar-se-iam daqui a trinta anos. Eu, que nunca fumei e que provavelmente já cá não estarei daqui a trinta anos por causa do fumo passivo que traguei - e sempre revoltado, os escarcéus que fiz nos restaurantes no tempo em que a corvina era sempre servida com o seu véu de nicotina! - eu, o antifumador primário, pedi a um amigo o seu maço. Tirei um cigarro, acariciei a suavidade da mortalha, a rugosidade do filtro, e inspirei o tabaco com a mesma deferência carinhosa de um arqueólogo a manusear um osso que serviu para rachar cabeças neolíticas...

Ferros de engomar que guardavam carvão e pesam como halteres de ginásio só os aprecio porque não sou eu que passo as minhas camisas? Seja, haverá oportunismo tipo tia Espírito Santo a brincar aos pobrezinhos na Comporta. Mas a verdade é que não consigo esconder um certo desprezo pelo meu portátil Toshiba. Não que ele me falhe na capacidade do disco rígido, nem na velocidade do processador. Mas, lá está, não me suja os dedos. Oh, o prazer que era, no meio de uma crónica, ter de enrolar a fita vermelha e negra, como a camisola do Flamengo, onde jogaram Garrincha e Domingos da Guia! Tenho para mim que a decadência do jornalismo começou quando o género humano abdicou para um anão japonês escondido numa qualquer memória RAM a decisão da mudança de linha. Antes, era a minha pancadinha, amigável e firme num manípulo rodando um cilindro, que mudava a linha - eu sentia-me um Pessoa ou um Rilke, que só mudavam de verso quando queriam. Percebem, agora, a minha nostalgia?

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