A nova vida d’Os Lusíadas

Apenas cerca de quarenta exemplares da primeira edição da obra máxima da literatura portuguesa sobreviveram às aventuras e desventuras de quase quatro séculos e meio. Por isso, preservar cada um deles é uma tarefa a ser tratada com pinças. A Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, museu-escola de restauro e conservação, meteu-se nessa tarefa e deu nova vida a um desses raros exemplares do poema heróico de Camões.
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Numa célebre reportagem escrita por Gustavo Matos Sequeira, em 1924, sobre o leilão Ameal, um dos lotes em praça era a primeira edição de Os Lusíadas. Obra raríssima, publicada em 1572. Embora o primeiro lance se tenha iniciado simbolicamente por um escudo, as licitações logo dispararam. Num ápice atingiu-se os 20 100 escudos arrematados por um alfarrabista, que se suspeitou encontrar-se à ordem do ex-rei D. Manuel II, então no exílio, que há anos ansiava por um exemplar.Uma fortuna para a época – que, aliás, mereceria irónico desabafo de um dos licitantes do leilão: «E morreu Camões à fome!»

De facto, a obra maior da literatura lusitana é cada vez mais, quase quatro séculos e meio após sair do prelo, uma preciosidade. Não apenas pela sua qualidade literária mas sobretudo por o tempo – esse grande destruidor de livros, em parte auxiliado pelo homem – tornar as edições primitivas de obras quinhentistas muito raras. Da edição princeps de Os Lusíadas, por exemplo, conhecem-se apenas cerca de quarenta exemplares em todo o mundo, englobadas as duas impressões distintas desse ano de 1572, reconhecíveis, entre outros pormenores, pela orientação distinta da gravura de um bico de pelicano no frontispício.

Curiosamente, a segunda impressão é até a mais rara, existindo somente oito exemplares. O último que esteve no mercado foi leiloado em 1990 no Palácio do Correio Velho, em Lisboa, sendo adquirido pela Biblioteca Nacional, que exerceu direito de preferência, por vinte mil contos (moeda à época, equivalente a cem mil euros). Mas até existia uma proposta de um particular oferecendo cerca de três vezes mais.

Assim, face à extrema raridade – e desde 1990 nunca mais surgiu qualquer exemplar no activo mercado dos livros antigos – quem tem o «seu» Os Lusíadas chama-lhe seu. Não o vende por nada deste mundo – mas se o quisesse vender, por certo meio mundo o desejaria adquirir. Porém, quem o tem não lhe bastará tê-lo. Necessita de preservá-lo. Foi exactamente esta a situação com que se deparou o Ateneu Comercial do Porto que, no ano passado, encomendou à Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva (FRESS) a recuperação de um exemplar da primeira edição.

Aproveitando as suas diversas oficinas especializadas em restauro – desde livros até madeiras e têxteis, passando por metais, peles, pintura decorativa –, técnicos especializados da FRESS fizeram, ao longo de vários meses, um trabalho ímpar de «rejuvenescimento». Com efeito, aquele exemplar de Os Lusíadas parecia ter passado «por mares nunca de antes navegados», patente em danos de tal monta que bem necessitavam de muito «engenho e arte» para ser restaurado.

Manchas de humidade e de oxidação generalizada, degradação da lombada e encadernação, folhas com lacunas, rasgões e festos abertos – de tudo isto e muito mais sofria o exemplar. Dir-se-ia uma alegoria a Portugal, nação agora pálida e enfezada, outrora firme e grandiosa. A necessitar, portanto, de uma lavagem.

Literal, no caso da obra em questão – não suficiente, por certo, para o país. De facto, por mais estranho que possa parecer a um leigo, o principal produto para limpar um livro antigo das marcas do tempo é a água. Mas não uma qualquer, nem de qualquer modo.

Primeiro, o livro foi meticulosamente «desmontado», página a página – ou seja, separado da encadernação e das costuras –, removendo-se então as partículas degradadas. Em seguida, procedeu-se a uma lavagem individual com água destilada a diversas temperaturas, em função do estado de (má) conservação de cada folha. Saídas do banho, foram postas a secar ao ar, de forma natural, em grelhas, de modo a manterem a sua textura sem afectar a impressão. Adicionou-se então uma espécie de cola (tylose) para reforço da limpeza. Após tudo isto, as folhas com falta de papel foram minuciosamente «remendadas» com papel japonês de gramagem semelhante ao original, uma vez que actualmente já não se produz o papel em uso até ao século XVII – à base de fibras de algodão e linho.

A encadernação, em muito mau estado, foi também recuperada. Mas um olhar clínico não se aperceberá nem da criação de novas nervuras na lombada nem tão-pouco de qualquer remendo com carneira. O método usado foi quase cirúrgico: retirou-se primeiro a totalidade da pele original, mesmo com as falhas, colocou-se em seguida uma nova pele muito fina e depois revestiu-se novamente a capa com a pele velha, fazendo-se por fim um tratamento de «uniformização».

No caso dos caracteres de identificação na lombada da obra também se fez um «remendo», com uma perfeição imaculada. Não se pense, porém, que essa tarefa está à mão de qualquer um. Gravar uma letra que seja numa lombada, com película de ouro puro, envolve mestria na execução. O processo de gravar as letras ou quaisquer outros símbolos exige, por exemplo, o recurso a «mordente», feito à base de clara de ovo e vinagre, e até a azeite.

O trabalho artístico da FRESS foi de tal modo inédito que, em colaboração com o Ateneu Comercial do Porto, se decidiu não só elaborar um relatório minucioso de todo o processo de restauro como também produzir uma edição fac-similada de quinhentos exemplares numerados. Uma parte foi já entregue ao Ateneu – que os comercializou a seiscentos euros o exemplar –, estando agora a FRESS a ultimar uma edição de coleccionador que estará disponível a partir do dia 24 deste mês. O preço é de 760 euros. Só isto dá para imaginar quanto poderia custar um original, se porventura agora surgisse para venda num qualquer leilão.

Museu e escola

Desde 1953, por doação ao Estado do Palácio Azurara, em Lisboa, pelo banqueiro que lhe cedeu o nome, a Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva – tutelada pelo Ministério da Cultura – tem sido um misto de museu e escola de artes e ofícios. Além de um espólio de valor incalculável patente ao público – mobiliário, têxtil, pratas, porcelana chinesa, faiança, azulejos, pintura, desenho, escultura e encadernação –, esta Fundação teve, desde o início, como objectivo essencial não deixar morrer artes fundamentais para a preservação do património. Nas suas 18 oficinas trabalham dezenas de mestres em áreas onde, cada vez mais, escasseiam técnicos especializados no país.

A vida da Fundação não tem sido fácil. Apesar de ser uma evidência a necessidade de recuperação do património histórico do país, incluindo espaços públicos, as solicitações para trabalhos só nos últimos anos têm aumentado. «Em 2005 apenas tivemos receitas da ordem dos 86 mil euros, mas em 2009 atingimos 1,2 milhões de euros», salienta Luís Ferreira Calado, actual presidente da Fundação e antigo director do IPPAR.

Em parte, este aumento das receitas deve-se ao reforço de especialistas capazes de orientar grandes projectos de restauro e conservação – como se verificou com o Hotel de Seteais, em Sintra –, mas também a uma mudança de atitude por parte da Administração Pública em contratar os serviços da Fundação. «Antes de 2005, o Estado raramente recorria aos nossos serviços e felizmente alterou-se essa postura nos últimos tempos», refere Luís Ferreira Calado, exemplificando com as obras de restauro em curso no Museu de Arte Popular.

Programada está a criação já no próximo ano lectivo de uma nova licenciatura em Conservação e Restauro, de modo a suprir as carências nestes sectores. O presidente da Fundação não teme que os futuros licenciados possam vir criar concorrência à própria escola que os formará. Pelo contrário. «O objectivo fundamental da Fundação sempre foi e será manter vivas as artes; por isso atingiremos o nosso fim se os nossos antigos alunos, bem qualificados, puderem transmitir o seu saber em prol da conservação do património nacional», refere Ferreira Calado.

Livros que valem ouro

Qualquer alfarrabista ou leiloeiro sabe que um livro antigo vale aquilo que um comprador está disposto a dar. Neste sector aplica-se a velha lei da oferta e da procura. Havendo muitos livros (oferta), os preços baixam porque facilmente se satisfaz a procura. Mas se um livro é raro, se aparece apenas um em décadas, basta existirem dois interessados endinheirados para se poder atingir, num despique, somas astronómicas. Isabel Maiorca, especialista em livros antigos do Palácio do Correio Velho – a leiloeira que vendeu o último exemplar de primeira edição de Os Lusíadas, em 1990 – não consegue apontar o preço que poderia atingir agora um exemplar princeps da obra-prima de Luís de Camões se surgisse no mercado. «Haveria muitos interessados e não se consegue prever até onde poderiam ir os lances», afirma.

Aliás, tal como qualquer uma das duas primeiras impressões de Os Lusíadas, existe um conjunto de obras que, pela raridade, poderiam atingir preços de outro mundo no mercado livreiro se porventura surgissem à venda. À cabeça surgem o Vita Christi, um incunábulo (obra impressa antes de 1500) ou a Ásia (Década Primeira), de João de Barros, publicada em 1552. Porém, não é apenas o tempo o responsável por tornar rara uma obra. Em alguns casos, a culpa foi do próprio autor. Exemplo disso sucede com duas obras oitocentistas de autores consagrados. A primeira edição da Infanta Capelista, de Camilo Castelo Branco, resume-se agora a três exemplares conhecidos, por via de o escritor ter mandado destruir os livros a pedido de D. Pedro II do Brasil.

Antero de Quental, por razões nunca apuradas, destruiu também todos, ou praticamente todos, os exemplares da primeira edição do seu poema Fiat Lux, publicado em 1861. Mas na verdade, estes dois casos estão longe de ser uma excepção. Ao longo da história da literatura, a destruição de livros, por razões políticas e religiosas ou por ímpeto ou interesse do próprio autor, foram fenómenos comuns. Para sorte, curiosamente, de quem possui um «sobrevivente», pois valem ouro.

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