Filipe Arnaut Moreira: "A nossa fronteira já não passa por Badajoz, mas pela Finlândia"

A propósito do livro <em>O Domínio do Poder</em>, o major-general Arnaut Moreira nota que a Europa alimentou o sonho imperialista russo ao não ter integrado países como a Ucrânia. O professor universitário e comentador na CNN diz que se vence Moscovo com determinação do Ocidente e só vê a paz no Médio Oriente depois de os protagonistas darem a vez a outros.
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No livro faz referência ao major-general Karl Haushofer como um influente professor de geopolítica de Rudolph Hess. Podemos ter razões para temer os alunos do major-general Arnaut Moreira?
(risos) Julgo que não. Os alunos podem certamente mostrar o nível de moderação com que eu gosto de ensinar este conjunto de matérias. Não sou uma pessoa isenta, sou pró-ocidental. Quando comparo os valores ocidentais na análise geopolítica com outras civilizações, ainda não encontrei nada que se aproximasse daquilo que é a valorização que damos ao ser humano. Essa valorização passa por aspetos como a liberdade individual, que engloba também a liberdade de pensamento e de expressão. Não encontramos noutros lados do mundo a mesma facilidade de poder dizer coisas sem ser preso ou censurado. A outra questão passa pela capacidade de escolher o nosso futuro. Não podemos delegar essa responsabilidade num partido ou num conjunto de pessoas que acha ser dono da verdade e não faz mais do que encontrar esquemas legais de perpetuação do poder entre os membros dessa elite.

Faz uma caracterização do poder através de uma fórmula segundo a qual o poder é o resultado dos fatores capacidades e vontade. Em Portugal qual seria o resultado da multiplicação?
Aquilo que afeta Portugal são os mesmos fatores que afetam os outros países europeus. Criámos do poder uma ilusão, a de que se podia exercer poder sendo especialista numa única área de intervenção, o poder económico. Na Europa achámos que através do poder económico podíamos modelar o mundo. A globalização é um exemplo. Outro exemplo é que nós somos de longe os maiores fornecedores de ajuda humanitária aos outros países do mundo. Porquê? Porque acreditamos sinceramente que através da economia é possível desenvolver capacidades locais, que trarão melhores governos e não piores. Esta ilusão de que o poder económico é suficiente levou a machadada final quando foi a invasão da Ucrânia pela Federação Russa. Descobrimos que não temos equipamento militar e não é possível conter uma invasão militar apenas com instrumentos de natureza económica. O regime de sanções só atua, quando atua, a muito longo prazo. E nunca um regime de sanções foi capaz de mudar um tipo de regime. Cuba continua com o mesmo governo....

O Irão, a Coreia do Norte ou a Venezuela...
Ou seja, quando há um ator da cena internacional que se quer transformar outra vez num império, este só pode ser contido pela aplicação da força violenta do instrumento militar. Acordámos com tragédia para isto, já a Federação Russa tinha invadido uma porção muito significativa de território da Ucrânia. Temos imensa dificuldade, e os ucranianos sentem isso na pele, em empurrar a Federação Russa, porque logo nas primeiras semanas de combate ficou em posse de território imenso. Os outros atores descobriram uma fraqueza e vão explorá-la: é que nós deixamos de acreditar no instrumento militar enquanto elemento de contenção da força. Criámos uma vulnerabilidade imensa e depois deste tempo continuamos com dificuldade em encontrar resposta. Há outras formas de poder: de natureza diplomática, de natureza política, nomeadamente através de votações nas Nações Unidas, mas esse poder é muito ténue. Por uma unha negra a Federação Russa não foi eleita para o Comité dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Esses instrumentos são válidos, mas insuficientes. É por isso, aliás, que o livro se chama O Domínio do Poder, porque procura mostrar que deixámos uma era, a dos compromissos internacionais, dos tratados, das organizações com capacidade de mediação internacional criadas após a II Guerra Mundial, e que pensávamos ser o garante da paz e da segurança mundial, e que desapareceram completamente de cena. Estamos num momento de viragem na história da humanidade em que os instrumentos de poder, sobretudo os instrumentos de poder violento, passaram outra vez a fazer parte do nosso léxico, das nossas notícias diárias.

Explica no livro por que é do interesse do Ocidente conter a Rússia e que a troca de território pela paz é um logro. Só que há o risco de a Ucrânia perder o apoio, pelo menos em parte, do seu maior aliado, os EUA. Qual o caminho?
Eu tenho um nome para esse caminho: chama-se determinação. A determinação de que a Rússia não pode vencer a guerra. Até pode conquistar Avdiivka. Até pode manter Bakhmut, mas a Rússia não vai ganhar a guerra. Para que a Rússia não ganhe a guerra depende-se de duas coisas: na tal fórmula do poder, a capacidade da Ucrânia para deter qualquer tentativa russa de conquistar mais território e, por outro lado, ser capaz de ir reganhando território. Essa é uma questão. A outra é a vontade. E o problema é que a vontade não depende só dos ucranianos, isto é, a alimentação da guerra não depende exclusivamente dos ucranianos. Sobra vontade aos ucranianos, o problema são as vontades do Ocidente. Porque não podemos pensar que um país com a dimensão da Ucrânia se pode confrontar com o que são as capacidades militares da Federação Russa sem uma ajuda de natureza externa. Essas capacidades têm de ser fornecidas pelo Ocidente e, se não temos, é bom que tenhamos a nossa indústria de armamento a trabalhar rapidamente e em força, porque temos de garantir a nossa capacidade.

Citaçãocitacao"Se deixarmos essas bases territoriais de poder [Donbass e Crimeia] nas mãos russas pois daqui a oito anos vamos estar outra vez a lamentar esse facto."

O que está em risco?
Duas coisas. Uma de natureza regional e outra de natureza global. Sobre a primeira, eu vejo a televisão russa todos os dias e o que se diz ali não é sobre a Ucrânia, é sobre a restauração do Império Russo, o que engloba os países bálticos, a Moldávia, os países ao sul do Cáucaso, o regresso a uma influência decisiva sobre a Ásia central, etc. O que está em causa é o pensamento sobre o que deve ser a Rússia e seu domínio de natureza territorial. Aliás, Catarina, a Grande, dizia: 'Quando falamos de segurança da Rússia temos de falar em expansão territorial'. Este problema podia ter sido resolvido se em tempo tivéssemos integrado os países frágeis que na ótica antiga estavam na esfera de influência da União Soviética e que foram deixados abandonados: a Ucrânia, a Moldávia, a Geórgia. Porque eram situações complexas, fomos deixando de fora, do ponto de vista político - não estou a falar da NATO -, um conjunto de países na órbita da Rússia. Foi um sinal: se a Europa não avançou para integrar estes países é porque não se importa que a Federação Russa vá incorporá-los. O projeto da Ucrânia é fundamental para o projeto europeu.

O que é falhar na Ucrânia?
É perder a guerra, fazer com que a Federação Russa detenha sobre a Ucrânia um poder, ou global de retirar soberania à Ucrânia, ou suficientemente regional para garantir novas bases de conquista. Foi o que aconteceu com o Donbass e com a Crimeia. Na Crimeia não havia ainda a ponte, não havia logística, não era uma base de apoio para uma conquista imediata, mas a sedimentação do seu poder e a militarização durante oito anos permitiu-lhe garantir as bases de poder para continuar a sua ofensiva sobre a Ucrânia. Se deixarmos essas bases territoriais de poder nas mãos russas pois daqui a oito anos vamos estar outra vez a lamentar esse facto. Há depois o projeto de natureza global, que afeta não a Europa, mas todo o Ocidente. Afinal, o poder militar compensa e todos os atores insatisfeitos com as fronteiras que ficaram de processos históricos, autênticas tragédias humanas que se viveram para fixar aqueles limites, de repente sentem-se não apenas com a legitimidade pelo exemplo da Federação Russa, como inclusivamente com a perceção da incapacidade de o Ocidente reagir, isto é dar tudo como factos consumados.

Vimos agora o Azerbaijão...
Exatamente. Aquilo que se passou no Nargorno-Karabakh não mereceu da nossa parte mais do que comentários de fim de página. No entanto aquelas pessoas estavam lá há centenas de anos, eram uma comunidade estabelecida e deu-se uma limpeza étnica em poucas horas. Estávamos distraídos. À medida que vamos fazendo de bombeiros apagando fogos vamos esquecendo problemas que estavam por resolver e que as potências com poder militar se sentem com enorme liberdade de ação no sistema internacional para poderem conduzir essas operações sem serem condenadas ou sofrerem alguma sanção.

Daí a importância da geopolítica.
Ao longo dos anos fomos atribuindo o mesmo significado àquilo que é a geopolítica e as relações internacionais. Mas na verdade o 'geo' está lá por alguma coisa. Nem toda a geografia fornece o mesmo tipo de capacidades a cada um dos povos ou dos estados. Por alguma razão a Federação Russa começou por tentar encravar a Ucrânia, retirando todo o acesso ao mar Negro e ao mar de Azov. Uma Ucrânia encravada fica muito limitada no seu potencial de desenvolvimento económico e no conjunto de ajudas que podem eventualmente chegar. A geografia não é o único fator, mas é um fator muito condicionante. O facto de os Estados Unidos terem acesso livre a dois oceanos dá-lhe um caráter de polícia do mundo que outros países não podem ter. A China, que é um país imenso do ponto de vista geográfico, é muito continental. Está muito cercada por um conjunto de países que neste momento até ameaça, que vai da península da Coreia, passando pelo Japão, Filipinas e Vietname. Numa ótica de domínio global, a China precisa do acesso aos mares e o acesso está muito condicionado pelas questões de natureza geográfica. Vemos a China investir fortemente num conjunto de infraestruturas de natureza terrestre, procurando ultrapassar um conjunto de limitações, como por exemplo o estreito de Malaca, que lhe permita expandir o comércio sem ficar dependente dos estreitos.

Citaçãocitacao"A história de que os palestinianos são os donos da Palestina depende do ano a partir do qual se conte (...) A teoria dos dois Estados é uma ficção. Com estes atores não é possível encontrar uma solução."

Vivemos numa ordem de multipolaridade que, como afirma, é um espaço de indefinição e instabilidade. Porquê?
Uma ordem mundial caracteriza-se por um conjunto de alinhamentos que favorecem uns atores em relação aos outros. Nenhuma ordem foi desenhada para favorecer a todos, serve mais uns do que outros. Quando a China quer substituir a atual ordem mundial por outra o que está a querer fazer é ser ela a comandar de acordo com os seus interesses. Não é a mesma coisa os países estarem todos em guerra ou todos em paz, mesmo que essa paz implique passar áreas de soberania para outros. Por exemplo, Portugal aderiu à NATO para estar mais protegido. Se for ameaçado contará com o apoio dos aliados, mas assumimos também compromissos. Neste momento a nossa fronteira de segurança já não passa por Badajoz, mas algures entre a Finlândia e a Federação Russa. Qualquer problema que ocorra aí também é nosso. O modelo multipolar não funciona. A partir do momento em que haja uma guerra todos os atores vão alinhar em torno de duas posições: uns que estão a favor e outros que estão contra. O modelo multipolar é muito instável e à medida que aumentamos o número de polos, aumentamos a instabilidade porque aumentamos as possibilidades de conflitualidade entre os vários polos, e resulta da destruição de um outro modelo em vigor.

Escreveu que o Médio Oriente é uma coleção de tragédias sucessivas. Nesta coleção qual será o próximo capítulo?
Temos de distinguir entre uma guerra e um conflito. Esta guerra já começou e vai terminar como todas as outras, a do Yom Kippur, a dos Seis Dias. O que não terminou foi o conflito. A comunidade internacional vai mobilizar-se por forma a que haja areia suficiente para lançar sobre as labaredas, a guerra de alguma maneira desaparece ou passa para uma de objetivos muito limitados, ou eventualmente uma guerra congelada. Mas o conflito aí está. O Muro das Lamentações é a única parte que ficou do que era o templo de Herodes, que estava junto do antigo templo de Salomão. A história de que os palestinianos são os donos da Palestina, depende do ano a partir do qual se conte. Os palestinianos, como os judeus, são os habitantes naturais da Palestina, mas nunca conseguiram encontrar um regime de convivência entre estas duas comunidades. O caminho para a paz está cheio de obstáculos porque os interlocutores mudaram. Diz-se que é preciso voltar à teoria dos dois Estados. Isso é dos acordos de Oslo, quando os interlocutores aprenderam a confiar um no outro, de um lado tínhamos um Israel responsável e do outro uma Autoridade Palestiniana que tinha decidido pelo caminho do desenvolvimento através da cooperação e do reconhecimento de Israel. Mas esses atores já não existem. Os dois Estados são uma ficção, nenhum dos atores o aceita. Falamos [dos dois Estados] porque precisamos de uma narrativa de esperança, é como um barco que está a afundar e há uma tábua muito tosca que está à tona, pois é a ela que nos vamos agarrar porque é a única coisa que temos.

Por que é impossível?
Neste momento não existem condições para isso. Se a Palestina for reconhecida como um Estado tem direito a um exército e a comprar armamento. Tem direito a achar que o Irão é o grande fornecedor, e em vez de improvisar rockets vai ter os armamentos mais mortíferos que o Irão pode disponibilizar para atacar Israel. Com estes atores não é possível encontrar uma solução.

Kadhafi defendia uma federação.
O modelo da federação tinha a ver com as taxas de crescimento demográfico. A população palestiniana cresce 2% em cada ano. Como é possível nascer tanta gente num território sem recursos? Porque é um instrumento de natureza política para fazer rebentar aquela infraestrutura territorial, a demografia é do ponto de vista do Hamas um instrumento de pressão para a resolução do problema. Com 3,8 filhos por mulher, este problema será cada vez mais insustentável. Há uma questão fundamental: as causas podem ser legítimas, mas os intérpretes são decisivos e isto tem também a ver com os ativismos climáticos. Nós podemos destruir uma causa quando a entregamos na mão de alguém irresponsável.

O Domínio do Poder
Filipe Arnaut Moreira
Planeta
376 págs.

cesar.avo@dn.pt

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