A mulher de muitas caras
Um velho preconceito condiciona, muitas vezes, o olhar dos espectadores de cinema sobre os filmes mais "antigos". Por ação de uma cultura televisiva que tende a produzir ironia face a qualquer manifestação artística a que não seja possível colar o rótulo de "atualidade", tudo o que nos remeta para épocas mais ou menos distantes é encarado como pitoresco, anedótico e, no limite, irrelevante.
O trabalho dos atores, por exemplo. De facto, não é verdade que o cinema mudo tenha sido habitado apenas por atores peritos em esgares mais ou menos histriónicos. Em primeiro lugar, a evolução da comédia até à eclosão do som, em finais da década de 1920, está longe de ser coisa banal ou desprezível; depois, os atores foram-se transfigurando desde os primeiros filmes que "reproduziam" a cena teatral até aos que, a pouco e pouco, souberam diversificar as escalas das imagens e enriquecer o conceito específico de montagem.
Nesse contexto, Greta Garbo (1905-1990) é um prodígio de versatilidade, subtileza e intensidade dramática. E não apenas porque passou, incólume, do mudo para o sonoro. Também porque toda a sua evolução revela um labor alicerçado na certeza de que a câmara de filmar, longe de ser um mero objeto de registo, é uma "coisa" que refaz as coordenadas de espaço e tempo, obrigando o ator/atriz a uma sofisticada arte corporal.
O Beijo, de Jacques Feyder, será um dos títulos mais reveladores dessa sua capacidade de abraçar a plura-lidade das personagens - nela, e com ela, o mais discreto movimento dos olhos transforma-se num pequeno grande acontecimento no ecrã. Alguns anos mais tarde, com A Mulher de Duas Caras (1941), de George Cukor, decidiu despedir-se do cinema. O certo é que continuamos a celebrá-la como uma atriz genuinamente moderna.