A Mulher-a-dias do texto ou como viver com 300 euros a transformar em prosa as palavras que os outros dizem

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300?

Margarida Ferra

Transcrição de entrevistas

29 anos

Licenciatura em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa

Quando tenta arranjar um termo que defina o trabalho que faz, Margarida Ferra, 29 anos, recorre à expressão de um amigo. "Ele diz que sou uma mulher-a-dias do texto." Complexo de inferioridade? Nenhum. "Não encontro melhor definição", atira, no sorrir aberto de quem se incomoda pouco em limpar impurezas e repetições, em lidar com as palavras dos textos dos outros que sabe não serem, muitas vezes, as que usaria se a assinatura fosse sua. Mas não é. Ela ouve e transcreve. Tal qual. Expressão a expressão. Excepto quando lhe dão liberdade para fazer alguma tarefa de edição e livrar-se da "palha", substantivo que nestes domínios designa o que não acrescenta nada à mensagem. Mas Margarida acaba por confessar: "Estou nos bastidores, mas gostava de estar um bocadinho mais à frente..."

Margarida desgrava entrevistas, depoimentos, dissertações. Ganha à hora. Uma hora de gravação equivale a... pouco. Defina-se, então, "pouco": em 2005 ganhou cerca de 400 euros por mês, em 2006, a média, somados todos os recibos verdes que passou, não foi além dos 300. Não se queixa. "Este ano está a aparecer mais trabalho." Talvez chegue aos 400 euros novamente. Confessa que precisaria de mais 200 para conseguir "comprar umas roupas, ir mais vezes jantar...". O seu orçamento dá uma pequena ajuda em casa. Com o grosso das despesas a cargo do marido, ela paga à empregada para lhe "organizar a casa uma vez por semana", paga para lhe passarem a roupa a ferro, paga a conta do telemóvel e a Segurança Social. O que sobra? Nada. "É incrível ter de pagar 150 euros por mês por ter facturado em 2004 o equivalente a nove salários mínimos. É um convite a não fazer nada", indigna-se.

Como trabalha em casa, não gasta em transportes e tem tempo para os dois filhos. Bebés de dois anos e quatro meses, respectivamente. A Alice e o Pedro, que dormem a sesta numa tarde de chuva em que não se houve um ruído no apartamento onde vivem, num bairro popular de Lisboa.

Licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa, Margarida, na hora de escolher uma especialização, soube o que não queria. E não queria a vertente "jornalismo", sentia que não tinha "bagagem" para se aventurar no cinema, e a televisão não era um projecto que encarasse. Optou por "comunicação e cultura", coisa vaga, concede, mas que lhe permitia não se afastar do que gostava. Os livros.

E enquanto fazia o curso, foi fazendo outras coisas. Trabalhou no IPJ, escreveu para várias publicações, como o Jornal de Letras ou a revista dos Artistas Unidos, fez revisão de texto. Ganhava à peça. Fixo, só quando foi para uma galeria de arte ou esteve na Clepsidra, livraria especializada em poesia, com porta aberta em Massamá. Era lá que Margarida fazia o que mais gosta. Vender livros, aconselhar, falar de livros mesmo com quem nada sabe deles. Mais tarde haveria de ir para a Barata, de Campo de Ourique, fazer o mesmo até que se cumpriu o princípio do seu grande projecto: "Ser mãe de dois filhos antes dos 30." No início de 2005 nascia Alice. No Verão de 2006 haveria de nascer Pedro.

O projecto cumpriu-se. Além de lidar com as palavras dos outros, Margarida gostava agora de apostar nas dela. Até porque de tanto desgravar entrevistas foi aprendendo a técnica de as fazer. E gostava de tentar a reportagem. Escrever em casa, por agora, enquanto Pedro faz a sesta e Alice fica no infantário... Ah!, e se pudesse, fazia uma pós-graduação em Letras e um curso de espanhol, porque descobriu que gosta de traduzir, e...

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