"A maioria dos negros tem medo de sair à rua no 10 de junho"
"Todo o homem negro, conscientemente ou não, a dada altura da sua vida, já odiou o homem branco". São as duas primeiras linhas do artigo que o músico e cronista luso-angolano Kalaf Ângelo Epalanga publicou no site Rede Angola a 10 de fevereiro, cinco dias após os acontecimentos na Cova da Moura, no mesmo dia em no Público se lia a reportagem-choque em que se denunciam comportamentos racistas da PSP, a cujos agentes se atribuem frases como "Não sabem o que eu odeio vocês, raça do caralho, pretos de merda".
Kalaf sorri quando ouve que o seu artigo provocou polémica acesa nas redes sociais. "Depois de ver aquelas notícias sobre a Cova da Moura não encontrei outra forma de expressar o que sentia senão a de inverter os papéis. Aqueles polícias disseram: "Não gosto de pretos". É pouco comum ouvir um negro dizer "não gosto de brancos", pelo menos de uma forma tão visível. Os negros não gostam de falar sobre racismo. Estão agradecidos de estar na Europa e os deixarem trabalhar aqui. Mas é preciso perceber que a maioria tem medo de sair à rua no dia 10 de junho. E antes do Alcino Monteiro [português de origem cabo-verdiana assassinado em 1995 por skinheads] já sucedia. Há uma onda de ressentimento em relação aos brancos que, mesmo tendo razões, é assustadora." Ressentimento? "É o que se sente quando se pensa em 500 anos de escravatura."
Este natural de Benguela nascido em 1978 que recentemente obteve nacionalidade portuguesa apressa-se a ajuntar, todavia: "Tenho uma relação maravilhosa com os meus amigos brancos, não odeio os brancos." Qual era, então, o objetivo daquela frase? "A primeira frase é importante para um cronista. Se eu tivesse posto aquela frase no final, ou não a tivesse usado, estaríamos a falar?"
É uma boa pergunta. Talvez a sociedade portuguesa precise de ser abanada para acordar da espécie de torpor negacionista em que vive no que diz respeito ao racismo. Talvez precise de sentir que é possível que a agressão quotidiana, constante, que se inflige às minorias étnicas pode ter como avesso uma agressividade pelo menos tão surda e estulta como a sua.
Mas há quem, como o sociólogo João Filipe Marques, autor da tese de doutoramento Do Não Racismo Português aos Dois Racismos dos Portugueses (2007), considere que Kalaf "caiu na armadilha": "O que ele diz aceita a ideia de que há dois blocos antagónicos, o dos brancos e o dos negros, aceita essa premissa que é a do racismo e da discriminação. E é um incentivo ao ódio, o que não faz qualquer sentido. Em momentos destes é muito importante pôr água na fervura. Claro que temos de saber que existe um passado, um contexto histórico. Mas o discurso da culpa -- a culpa de Portugal, a culpa dos "brancos" -- não tem cabimento."
O que, frisa, não significa, de modo algum, negar a existência de racismo, discriminação e vitimização por motivos de cor ou etnia em Portugal. "Há um mito do não racismo dos portugueses construído pelo Estado Novo. É muito interessante que a partir do momento em que começou a contestação à manutenção das colónias, praticamente de um dia para o outro Salazar extirpou de toda a legislação e documentos oficiais a palavra colónia, acabou com o estatuto do indígena, com os portugueses de segunda [que eram os nascidos nas colónias] e Portugal passou a definir-se como nação multirracial e multicontinental."
Uma limpeza que, naturalmente, não impediu os massacres e horrores da guerra colonial. E que de algum modo é visível na afeção de superioridade paternalista, espécie de dulcificação paradoxal, simultaneamente apoucante e desculpabilizadora da designação do outro pela cor, que subsiste até hoje na expressão "pretinho". A ilustrar um dos dois tipos de racismo que João Filipe Marques identifica em Portugal, o desigualitário: "É o que hierarquiza em termos inferior e superior. Coloca os seres humanos em termos de inferioridade e superioridade. É o racismo que considera haver profissões destinadas às pessoas inferiores." Ao contrário do que crê existir em relação aos ciganos, de tipo "diferencialista" ("O paradigma é o anti-semitismo. É o racismo da separação, que vê o grupo não como necessariamente inferior, até pode achá-lo superior, como os nazis achavam os judeus, mas como perigoso, sem integração ou convivência possível"), aponta o desigualitário como o que se observa em relação aos negros em Portugal, embora, por princípio recuse utilizar essa palavra. "Não uso a denominação da cor. É uma escolha: porque a língua faz realidade. Uso expressões complicadas como "populações originárias da imigração africana". Assumo que é um problema que não sei como resolver."
Um problema que de resto se coloca no jornalismo - quando é que se deve nomear a cor de alguém, se há situações em que a expressão "luso-africano" não é adequada (se alguma vez é, já que há brancos africanos)? É racismo dizer "negro" como se diz "louro"? Num país em que, ao contrário do que sucedeu noutros - nos EUA, por exemplo - não se nomeia o que se assume como norma (nunca se diz de alguém num texto que é "branco"; quando não se diz está implícito que o é), criou-se o tabu, no jornalismo, de nomear a cor.
Hélder Amaral, o único deputado negro da Assembleia da República, assente. "Percebo que se fale disso com pinças, e que se sinta mal por me ligar a dizer que quer falar comigo por ser negro. Porém o que vejo é que se faz uma coisa sobre o deputado mais jovem, sobre as mulheres, o primeiro homossexual assumido. Mas nunca se fez uma coisa sobre o único luso-africano. Ninguém pega. Dizem-me se calhar é para não chamar a atenção. Eu dava para esse peditório porque acho que é preciso chamar a atenção."
Há oito anos na bancada do CDS, não consegue perceber o porquê de ser o único, e ainda por cima no partido mais à direita. "A AR representa ou deve representar toda a variedade da sociedade portuguesa. Há uma longa história do País que não está representada no parlamento. Decorrido este tempo todo acho que já devia ter aprendido a conviver com isso. Mas não consegue. Houve até recentemente um episódio caricato. Estava na sala de visitas do parlamento, que tem umas pinturas em que negros estão representados de uma forma pouco digna. E houve alguém que me pediu desculpa, disse-me: "Até já se pensa em tirar isto." Disse que não há motivo para tirar, faz parte da história. Gostava era que se avançasse." Ri. "Quando começaram a ver-me com Paulo Portas julgavam que era segurança ou motorista. Depois já diziam: "O preto até é esperto." Uma vez fui ao parlamento europeu, na altura da presidência portuguesa. Às tantas sentei-me no lugar e vieram-me perguntar por que estava ali sentado. E tinha de liderar um trabalho e os espanhóis e os ingleses perguntaram quem eu era, e queriam que lhes mostrasse o texto antes. Fui indagar se era normal e disseram-me que não." Volta a rir, com amargura. "Não vale a pena ter ilusões, há um tratamento diferenciado. Há gente escondida que não se quer chatear. E há momentos em que eu próprio digo: "Vou para casa, já foi uma sorte chegar aqui.""
Nascido em Angola, há 47 anos, e veio de lá com seis, para uma aldeia nortenha onde a sua família era a única negra. "Fui a mascote. Aprendi a conviver bem com ser o único. Cabe-me a mim quebrar barreiras." Ainda assim, nunca se dedicou especificamente, no seu trabalho parlamentar, à discriminação racial. "Foi um conselho de uma deputada socialista minha amiga: disse que se me acantonasse teria mais dificuldade em ser levado a sério, podia ser recebido com mais agressividade. O Fernando Ká, que foi o primeiro deputado negro da democracia (pelo PS, de 1991 a 1995) saiu do parlamento muito revoltado, queixando-se de racismo."
Terá sido talvez esta espécie de negação que o levou, há uns tempos, a dizer numa entrevista: "Estou farto de ser branco." Revolta? "Tenho filhos, uma rapariga e um rapaz. E o que mais me choca é eles sofrerem com isto. O meu filho está num colégio privado e às vezes chega a casa a contar que lhe chamaram preto. Até já fui à escola por causa disso. É o único negro lá. A minha filha agora está na escola pública e deixou de sentir isso, porque há mais negros." Suspira. "Tem tudo a ver com a invisibilidade. Há um conjunto de pessoas de pele negra que nasceram cá e não se sentem portugueses. Há um longo caminho a fazer em termos de integração. Basta olhar para a TV. Aparecem de vez em quando uns negros nas novelas... Mas pivôs negros, há algum? Os miúdos negros não se sentem representados."
Kalaf não podia estar mais de acordo. "Há algum jornalista negro no DN? Porquê? Há um sistema. À ausência de outra palavra, é preguiça. Mas adorava saber quantos jornalistas negros mandam currículos para os media. Não seria interessante ter um jornalista negro a fazer este trabalho? Faria decerto perguntas diferentes."
Conceição Queirós, 40 anos, jornalista há 21, na TVI desde 1999, é a única cara negra da TV portuguesa. Mas nunca apresentou noticiários: é repórter. "Comecei no Rádio Clube Português, depois estive no Semanário e quando me vi desempregada tentei as TV. Comecei pela RTP África, confesso. Achei que seria mais fácil para mim por ser africana. Mas fui rejeitada, pelo que liguei para a TVI, de uma cabine em Entrecampos, a perguntar se precisavam de jornalistas."
Quatro horas depois estava numa entrevista com um produtor e era contratada. "Não posso dizer que tenha sido vítima de racismo, até porque me permitiram ser grande repórter, que é o apogeu do jornalismo. É uma chance que devo à Manuela Moura Guedes." Ainda assim, esta natural de Moçambique, onde viveu até aos 12 anos, reconhece a estranheza de ser a única. "Em Inglaterra por exemplo é normalíssimo veres um indiano ou uma negra a apresentar as notícias. É muito importante isso suceder. Um negro vê outro negro ali e pensa: "Posso lá chegar."" Por que motivo, então, não haverá por parte das direções das TV essa preocupação, esse desígnio de integração? "Não compreendo. Se calhar acham que um negro não dá audiências. A grande reportagem com mais espetadores da TVI é minha: dois milhões. E é sobre a Orquestra Geração, uma orquestra de miúdos de bairros sociais ou problemáticos. Todos negros. Às tantas estava a editar e virei-me para o meu colega e disse: "Jornalista negra, protagonistas negros, que é que isto vai dar?" E foi um sucesso estrondoso." Dá uma gargalhada. "Sei o que senti quando vi a Alberta Marques Fernandes, que é um pouco mulata, como primeira cara da SIC, em 1992. Fiquei muito feliz. E quando Obama foi eleito chorei baba e ranho."
Em Portugal, o negro mais bem sucedido de sempre em termos de visibilidade deu a semana passada, simbolicamente, entrada no Panteão. Kalaf sorri com o seu sorriso entre o educado e o trocista. "Pensei nisso antes, que era inevitável que ele fosse para o Panteão. O negro mais celebrado é o futebolista. Geralmente só celebramos os negros atletas ou artistas. A seguir será a Cesária Évora ou a Marisa. Isso entristece-me bastante. Só celebramos os negros pelos seus efeitos extraordinários aos olhos das massas."
Autor de um livro de crónicas, publicado no fim de 2014, intitulado O angolano que comprou Lisboa por metade do preço, Kalaf deu-se conta de uma alteração de perspetiva dos portugueses na relação com os negros. "O dono de um restaurante onde eu tinha ido comer perguntou-me se queria comprá-lo." A entrada em força de elites africanas, sobretudo angolanas, com muito dinheiro, na economia, nos media, nas universidades vai decerto fazer mexer o racismo português.
Mas pode ser que não no melhor sentido, aventa João Filipe Marques. "Avançando com uma mera especulação sociológica, podemos estar a assistir a uma passagem de um racismo do tipo desigualitário para o racismo do tipo diferencialista, no que diz respeito aos negros." Os "pretinhos" já não como inferiores, trolhas e empregadas domésticas, úteis e dóceis, mas como poder e ameaça - nunca iguais. "Temos um discurso e uma prática que nem sempre coincidem", conclui Hélder Amaral. "Um país que se crê de brandos costumes e depois no concreto sucede isto."