A língua portuguesa é feita de palavras e não de números, mas estes são tão impressionantes como a própria matéria-prima que os autores que usam a língua portuguesa como base para a criação literária têm escrito ao longo dos séculos. Oficialmente, comemora-se pela primeira vez na próxima terça-feira o Dia Mundial da Língua Portuguesa, falada por 260 milhões de pessoas em todo o mundo, e a mais difundida no hemisfério sul. No final do século, deverão ser 500 milhões..Da Guiné, a lusa língua.Língua lusa minha não sei se sonhas ó língua! sei, sim que deixas sonhar. língua! lusa língua minha companheira, é amiga, fraterna, e arauto. em mim rejeita espaços herméticos, fechados, limitados por falsas fronteiras. veste-se literariamente de tendências universalistas. e, quando um dia transportada em caravelas foi impelida a sonhar com "novos mundos" deixou-se conquistar. conquistámo-la! é ternuramente nossa. anichou-se nos meus sonhos. sonha comigo e alimenta o calcanhar da minha terra vermelha vestindo musas e amantes de muitos amores. na sua mágica andança pelas novas moranças africanas, aonde se instala, ora é ponte, ora é chave para ganhar espaços dantes negados... e ajuda o sonhar e falar e encantar e ser e ter. lusa língua, minha ferramenta operária é o meu baú de sentimentos, enciclopédia viva de tolerância. algures na costa ocidental da áfrica, mostra-se solidária, tolerante. interpreta camões na lírica dança multirracial ritmada pelo som mediático do compasso ancestral do bombolom. coabita criolizada e criadora e abecedária ao lado de mais de duas dezenas de outras línguas, ali nascidas mas feitas almas gémeas ante a iminência da construção de uma terra nova. nas águas serenas do corubal a lusa língua sobe rio acima... e na parede alta do macaréu sonha com o meu país que um dia será nação. sonha com noites sem insónias e sem bastões analfabetos molestando gente e abafando mentes ávidas de saber. afinal língua, tu sonhas, interpretando sonhos que não dormem!.Tony Tcheka.Tenho duas línguas: a portuguesa e a cabo-verdiana.A pergunta pode parecer, senão tola, pelo menos redundante, mas para mim, que tenho e uso duas línguas, a portuguesa e a cabo-verdiana, ela é perfeitamente e positivamente respondível: sim, a língua portuguesa ajuda à criação literária!.Mas depois dessa afirmação generalizada e obviamente egoísta, certamente que preciso de restringi-la um tanto, ou pelo menos situá-la, afinal das contas não sou o universo, sei de muitos poetas e prosadores cabo-verdianos que publicam em língua portuguesa, mas me dizem que primeiro preparam os seus textos em crioulo e só depois disso feito, laboriosamente, os vazam para português. Não deve ser incomum, lembro-me de, há muitos anos, ter ficado muito admirado ao ler de um escritor basco que dizia escrever os seus livros em euskara e só depois os traduzir para castelhano. Eu na verdade nunca passei por esse problema, nunca tive a tentação de escrever noutro idioma que não o português, se calhar porque cresci numa família onde a língua dominante era de facto o crioulo, mas onde também se ouvia falar português quase com naturalidade. De modo que estávamos familiarizados com a língua portuguesa, e quando necessário até falávamos, mesmo não poucas vezes rasgando alegremente a gramática. Lembro-me de certa vez ter orgulhosamente dito a um padre, que alegava eu não lhe ter pedido uma coisa qualquer, Eu não pedo nada a ninguém!.Bem, isso tudo acrescido do facto de toda a minha instrução, desde a mais primária e básica, ter sido feita em língua portuguesa, todos os livros que fui lendo desde muito menino - factos esses que condicionaram certamente a minha mente. E é por isso que quando aceito que a língua portuguesa ajuda à criação literária, estou a pensar exclusivamente em mim e na minha escrita, porque desde sempre escrevi em português sem nunca ter tido a tentação de fazer qualquer experiência em qualquer outra língua, nomeadamente o crioulo. E sei que se vier a ter absoluta necessidade de escrever em crioulo, certamente que o farei primeiro em português para depois traduzir. Sim, respondo que a língua portuguesa me ajudou na criação literária..Germano Almeida.De Angola, a língua desportuguesa.nunca conheci outra língua de sonhar e de escrever..é verdade que por vezes dentro de mim falo em inglês, e também o cubano, conhecido como español, por vezes me visita a memória e os espaços que até não sei bem..como sendo minha língua do coração e dos olhos e das mãos, eu gosto dessa língua portuguesa a que chamo desportuguesa por que assim lhe posso atribuir mais arejamento e candura; mais viagem e sonho, mais suor e respiro. é uma língua toda cheia de caminhos e de possibilidades, não apenas quando escrita, mas também quando dita, quando dançada em palavras já vindas da boca das crianças, que são quem, no fundo, melhor cria a liberdade de dizer..a língua portuguesa que gosto de apreciar é uma trança que já não se pode desfazer ou contar. só recontar..Ondjaki.Para um escritor brasileiro é esquiva.A língua portuguesa é o que temos de mais vasto e coletivo, é o que de mais importante soubemos construir juntos, século a século, discurso a discurso, diálogo a diálogo, livro a livro. Tem beleza, complexidade, cadência - é base rica para se fazer literatura, sem dúvida. Traz também seus desafios, é desigual e vária, é instável e esquiva, é indócil, afeita à rebeldia. Para um escritor brasileiro, parece que fugirá sempre ao registro preciso: quase toda palavra dita se acomodará mal na página escrita, quase toda palavra escrita irromperá estranha na boca. E, no entanto, por isso seguimos, por isso escrevemos, porque não podemos dominar a língua, porque queremos que ela, em sua imensidade, nos domine..Julian Fuks.O português do Brasil com iorubá, tupi e italiano.A língua portuguesa foi e sempre será a minha primeira língua, a que me permite elaborar uma narrativa, contar uma história, imaginar um mundo de personagens e plena vida ativa. Foi a língua falada por meus pais, avós, bisavós e ancestrais. Quando recordo as histórias dos meus ancestrais, faço-o pelos meandros desta língua, porque foi assim que se fixou no meu íntimo. O português falado no Brasil se distingue do português ibérico por conter no seu vocabulário palavras de diversos outros idiomas - iorubá, tupi, italiano e inúmeras línguas originárias - que refletem a formação do nosso povo. Ainda assim é o português, a língua que carrega a intensidade dos significados em suas palavras. Foi nela que cresci com desenvoltura, aprendi a ler - ato essencial para quem deseja criar, escrever -, decodifiquei o mundo e pude expressar meus sentimentos. Portanto, a língua portuguesa me ajuda a ser, a me transformar, a me compreender como devir, que é tudo o que preciso para pensar e fazer literatura..Itamar Vieira Junior.De Portugal, para universos culturais que criam futuro.No livro George Steiner: À Luz de Si mesmo lemos: "Sendo todas as línguas meios de reconstituição do mundo, sendo todas as línguas janelas que se abrem para existência, elas representam, por sua multiplicidade darwiniana, outras tantas possibilidades de dizer não à morte, ao sofrimento, às carências económicas assim como a todos os parâmetros de coação biossomática e social.".Steiner acreditava que a linguagem, além de ser uma forma especifica de descrição do mundo - logo, um território cultural autónomo, passível de comparação -, seria também uma forma de criar um futuro, resolvendo situações e problemas através de uma abordagem própria, isto é, dando respostas óbvias a perguntas que teriam respostas complexas (ou nenhumas) noutras línguas. Cada língua cria os seus próprios problemas e as suas próprias soluções, permitindo aceder a mundos que só estão disponíveis dentro de determinado idioma. Perder a riqueza da diversidade linguística é catastrófico. Wade Davis, no livro Los Guardianes de la Sabiduría Ancestral - Su Importancia en el Mundo Moderno, diz o seguinte em relação à constante extinção da diversidade linguística: "Das sete mil línguas que se falam actualmente, metade não está a ser ensinada às crianças. O resultado é que, se nada mudar, todas estas línguas irão desaparecer durante esta geração. Metade dos idiomas do mundo estão em perigo de extinção. Detenhamo-nos por um momento para pensar no que isto significa. Nada podia ser mais solitário do que vermo-nos rodeados de silêncio, do que ser o último representante de um povo capaz de falar a língua nativa (...) Este trágico destino é, de facto, a situação com a qual alguém se confronta, em algum lugar do planeta, a cada duas semanas. Em média, a cada quinze dias morre alguém que leva para a tumba as últimas sílabas e uma língua antiga. O que isto realmente significa é que no tempo de uma geração ou duas seremos confrontados com a perda de pelo menos metade do legado social, cultural e intelectual da humanidade.".Esta extinção implica o desaparecimento de verdadeiros universos culturais: "Um idioma não é unicamente uma série de regras gramaticais ou vocabulário. É uma glorificação do espírito humano, veículo pelo qual a alma humana de cada cultura chega ao mundo material. Cada idioma é uma floresta primitiva da inteligência, o pináculo do pensamento, um ecossistema de possibilidades espirituais.".Cada língua é um universo cultural e humano, mas, mais do que isso, é tempo: tal como disse Steiner, cria futuro. E este futuro só se vislumbra se a riqueza linguística não sucumbir à homogeneidade..Afonso Cruz.Não foi a minha língua materna em São Tomé e Príncipe.Floresça, fale, cante, ouça-se e viva A portuguesa língua, e já, onde for, Senhora vá de si, soberba e altiva... António Ferreira (1528-1569).Sabe-me bem, aliás sempre me soube bem, escrever e criar em língua portuguesa desde que na minha juventude li o poeta António Ferreira..Hoje é um dia muito especial. Pela primeira vez se dá o justo valor a nível universal a uma língua que desde tempos de antanho, reis, rainhas, poetas, prosadores, povo anónimo a usaram em sua fala e em seus escritos. Língua cheia de eufemismos onde cada um se vê refletido nos seus anseios, nas suas solidões... Ressoa em nós o intangível da língua portuguesa após a leitura dos mestres que nos legaram textos imortais. A transbordar as margens do imaginário, direi que o desfiar de palavras desta nossa língua é imperdível, deslumbrante, realista, criativo, atual... mas sobretudo belo... infinitamente belo!.É aqui que entra a leitura e a escrita como maravilhosa ferramenta para o saber com que antes sonhamos. A criatividade ao sabor da palavra tamborilada na sua expressão. Cada pedaço da língua portuguesa é lenha para a fogueira da nossa imaginação. Sempre bem-vinda. Algo tão natural quanto inspirar e respirar..Tenho investido nisso. Na beleza da língua portuguesa. Que não foi desde o início a minha língua materna porque essa foi e é uma de bela manta de retalhos mas em que a língua portuguesa é o seu maior pedaço. Graças a ela vou embelezando a mátria que outra língua me ofertou. É graças à língua portuguesa que crio e recrio a teia dos meus poemas, dos meus romances, dos meus contos. Como diz o poeta Patraquim, "as palavras dançam" e dançam muito melhor quando amamos o corpo que elas nos oferecem, a pele com que revestimos todos os dilemas do quotidiano. Sobretudo quando essa mesma língua tem uma palavra única no mundo, intraduzível, pertinente, a saudade, como uma vertigem nas páginas dos livros que vamos preenchendo. Como a alegoria envolta em névoa, como quando o vento nos adormece ao primeiro sopro do dia..Toda a língua será útil na hora de criar, de sonhar, de contar... Será bendita na hora do vamos ver. No momento em que conseguimos transformar o pensamento em texto. Mas em nenhuma outra temos a beleza, o gosto agridoce da palavra, o aconchego da melodia fonética que nos ajuda na arte do dizer e do contar como esta portuguesa língua que nos veste e nos despe desde que a usamos..Olinda Beja