A liberdade dos comentários no site do DN

O texto que se segue é a resposta do subdirector do Diário de Notícias, Pedro Tadeu, a perguntas do Provedor do Leitor, Oscar Mascarenhas, sobre a gestão das caixas de comentários dos leitores no site do DN. A pedido do próprio Provedor é aqui publicado na íntegra. Na zona de artigos relacionados com este encontra o link para ler artigo sobre o tema escrito pelo Provedor.
Publicado a
Atualizado a

Exm.º Provedor do Leitor do Diário de Notícias

As perguntas ao Provedor do Diário de Notícias levantam questões que há muito debatemos, inconclusivamente, no interior da redação e que gostariamos aqui de aprofundar um pouco, pois uma visão pouco amadurecida sobre a questão genérica das caixas de comentários poderá ter consequências nefastas para a relação dos media com os seus leitores.

Em primeiro lugar há que distinguir o meio: a comunicação de massas tradicional, em papel, rádio, ou TV, tem óbvias diferenças estruturais da que é feita através da Internet. Uma dessas características distintivas, relevante para este tema, é a inexistência na Internet de um real compromisso com a verdade, seja das narrativas ali expostas, seja da identidade dos seus utilizadores. Na Internet presume-se uma literal e radical noção de liberdade individual, onde tudo, ou quase tudo, é válido em termos de comunicação. Esse facto está intimamente ligado à génese da massificação da Internet, há mais de 20 anos, e não há qualquer razão para pensar que esse estatuto "irresponsável" possa vir a mudar ou, mais do que isso, seja bom ou necessário mudar.... Cada revolta do nosso tempo num país submetido a regime totalitário liquida, à partida, qualquer dúvida sobre isso.

Este estado radicalmente libertário da Internet traz grandes problemas ao jornalismo, que tem dificuldades em lidar com a autogestão de quem comunica na Internet, com a total ausência de edição e escolha (evita-se a palavra "censura") dos espaços comunicacionais que não controla. E o problema torna-se mesmo doloroso para o jornalista, treinado a separar, num oceano de informações, o trigo do joio, a procurar a relevância e a veracidade das informações, quando os leitores se apropriam do espaço que lhes é oferecido para fazer comentários e abordam os temas como muito bem entendem, inúmeras vezes à margem das notícias que era suposto comentarem.

O problema é clássico: se não queres ser lobo não lhe vistas a pele. Se o jornalismo quer utilizar um meio irreversivelmente libertário como o da Internet, não pode depois esperar obter algum controlo sobre ele. É, simplesmente, como a experiência demonstra, tarefa operacionalmente esgotante e frequentemente inglória mas, mais importante do que isso, corporiza um ato inevitavelmente violador da natureza do meio comunicacional que está a ser utilizado. Um ato de controlo sobre o que escrevem os leitores nas caixas de comentários é, por consequência, muitas vezes interpretado como um ato de traição do jornalismo aos próprios leitores, que esperam encontrar na imprensa que se apresenta como "livre" uma íntima cumplicidade com o estatuto libertário da Internet e não um agente ativo do seu (ainda por cima, aparentemente impossível) agrilhoamento. Essa "traição" pode ser fatal para o jornalismo profissional, rompendo um vínculo de confiança e cumplicidade com os leitores que é fundamental para a sua própria sobrevivência.

Este problema torna-se ainda mais grave por o espaço de total liberdade de expressão da Internet ter feito com que os leitores que frequentam as caixas de comentários sintam, legitimamente, que aquele espaço não é do jornal, mas sim seu, como qualquer outro espaço onde podem escrever livremente, tal como o facebook ou os blogues. Os leitores sentem-se donos e senhores das caixas de comentários, tendem a defender esse espaço com vigor e têm razão.

Sobre o anonimato, o jornalismo também vive uma dificuldade. A não permissão do anonimato nas caixas de comentários, para além de funcionalmente ser de praticabilidade difícil, volta a confrontar o jornal e os seus leitores com o estatuto libertário da Internet, pondo o jornal, inevitavelmente, do lado repressor de algo que as pessoas interiorizaram como um direito seu - até a simpática expressão "nickname" nasceu desta realidade que aceita, no mundo virtual, a legitimidade da ocultação. O exemplo do leitor que se queixa da usurpação da sua identidade por outro leitor, por exemplo, esquece que a sua própria identidade no site do DN não pode ser verificada de forma a que não suscite dúvidas, que pode haver outros leitores com o mesmo nome a quererem participar nos debates do site do DN, que há pessoas que assumem uma identidade nestas caixas de comentários diferente da sua identidade oficial (e que defendem essa identidade "virtual" com mais ardor do que a identidade "civil") e que bastaria ao leitor postar uma informação por baixo do alegado "usurpador" para esclarecer quem lê sobre o "quem é quem" na caixa de comentários do DN.

Também o argumento de que é preciso controlar os leitores para defender a credibilidade dos jornais me parece uma falácia. Na verdade, não conheço alguém que confunda o que é escrito nas caixas de comentários com a produção de conteúdos publicados num qualquer site pelo jornalismo profissional, sujeitos aos critérios éticos e deontológicos da profissão. Não havendo essa confusão, - e no site do DN não há - estando bem definida a fronteira entre o que é produzido pelos jornalistas e o que é produzido pelos leitores, a questão do respeito pela linha editorial do jornal, a defesa da sua credibilidade e da sua qualidade, a preservação da sua imagem pública estão manifestamente asseguradas. Pode, por exemplo, alguém defender seriamente que a imagem pública do Diário de Notícias está afetada pelos comentários dos leitores nas caixas de comentários, desde que elas foram abertas a uma participação livre, há mais de três anos? É uma evidência que não.

Há ainda a questão de que muitos comentários ofenderão a sensibilidade moral de outros leitores. Não temos dúvidas disso. Ofende a nossa, desde logo. Admito - e deixo aqui a sugestão - que tal como se faz nos filmes onde essa linguagem é utilizada, talvez se devesse fazer um aviso prévio aos leitores que querem ler comentários de que esse facto pode acontecer. O que não me parece correto é que a moral e a ética de uma parte dos leitores ou do próprio jornal se imponha unilateral e ditatorialmente a todos os leitores. Se alguém escreve uma frase cheia de palavrões, isso pode ser lido por uns como uma ofensa, pode ser olhado por outros com indiferença e pode ser interpretado por outros como relevante ou engraçado. Quem somos nós para decidir qual a leitura correta?

Qualquer estratégia de gestão dos comentários dos leitores não é neutra ou isenta. Tem sempre intenções específicas e consequências tangíveis. No entanto, estamos limitados, verdadeiramente, entre duas fronteiras: Ou aceitar que o espaço dos comentários é dado aos leitores, que eles são protagonistas e não meros espectadores desse espaço - tal como são em qualquer outro local na Internet - ou achar que temos de dominar a "besta". Não parece ser de aceitação fácil que um jornal possa olhar para os seus leitores - mesmo aqueles que escrevem palavrões, insultam ou se escondem no anonimato - como fazendo parte de uma "besta" que é preciso eliminar ou controlar... Como poderiamos, se assim pensássemos, trabalhar para os servir?

Antes de sermos jornalistas, somos cidadãos e não é aceitável que o jornalismo pense que os cidadãos não sabem avaliar os seus próprios interesses, nem defendê-los. É verdade que, por força da industrialização inevitável da produção jornalística, os jornais tendem a tratar o público como consumidores, indivíduos apolíticos e alheados da comunidade que toma e participa nas decisões. Mas aprofundar esse que já é um défice democrático para eliminar uns quantos disparates e palavrões que podem surgir nas caixas de comentários dos leitores é coisa que parece excessiva e que só pode trazer maus resultados para a sociedade.

Mesmo quem não partilhe destas opiniões sobre o tema terá, de qualquer forma, se quer ter autoridade para impôr regras limitativas às caixas de comentários, de ter respostas muito claras, sem sombras de dúvidas, para um leque enorme de questões complexas, como estas:. Qual a utilidade dos mecanismos automáticos de moderação? Devemos editar os comentários? Quais devem ser apagados? Devem ser apagados de todo? Quais as regras que devemos impôr para permitir o comentário a uma notícia? Quais os critérios para editar ou apagar um comentário? Quem está apto a fazê-lo? É de alguma forma possível o leitor, através da sua opinião, adulterar a linha editorial de um jornal? O comentário é uma manifestação racional? Os comentários são monólogos ou diálogos com os jornalistas? O anonimato é uma benção ou uma maldição da Internet? A interatividade é um contributo ou um problema? A influência dos comentários justifica os custos da moderação? Os comentários influenciam a formulação da opinião pública?

Grande parte destas perguntas foram colocadas recentemente ao editor do online do Diário de Notícias, Ricardo Simões Ferreira, no âmbito de uma investigação para uma tese de mestrado orientada pelo professor João Pissara Esteves, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. E o que estas questões nos revelam, portanto, são incertezas a que ninguém pode ainda responder definitivamente. Se é assim, como é que podemos atrever-nos a tomar decisões tão violentas como a de controlar a liberdade de expressão dos outros?

Falta analisar as funcionalidades de controlo dos comentários dos leitores que o DN dispõe e a forma como está neste momento a utilizá-las, mas antes disso - e como é provável que teremos de voltar ao tema - pensamos que estas questões inciais devem começar por ser debatidas e depois sim, poderemos ir, noutra ocasião, se o Provedor do Leitor assim o entender, atender às especificidades funcionais do site do Diário de Notícias.

Faltaria ainda analisar os problemas jurídicos desta questão mas, por um lado, não conhecemos casos concretos transitados em julgado que sirvam de modelo e, em segundo lugar, qualquer julgamento, mesmo estritamente jurídico, depende da visão que a sociedade tem das caixas de comentários, nomeadamente da sua relevância e influência na construção ou destruição de reputações, para então se poder elaborar um qualquer enquadramento regulatório e uma definição específica de penas a aplicar - e essa visão, como esta discussão comprova, é ainda muito incipiente. O que posso dizer é que desde setembro de 2010, quando iniciei funções no site do DN, não fui confrontado com qualquer queixa em tribunal por causa das caixas de comentários - e isto, provavelmente, diz tudo sobre a importância que a sociedade dá a este assunto: zero.

Um jornal nosso concorrente direto, com relevante tradição democrática, optou, há alguns meses, por um processo de controlo apertado dos comentários dos leitores, depois de um grande debate interno na redação sobre o tema. Foi criado um regulamento com várias limitações aos leitores. Uma das regras é a de não publicar comentários escritos em letras maiúsculas, por simbolizarem o grito. Para mim esta opção, que presumo não ter sido tomada de ânimo leve, simboliza o perigo maior que estamos a correr - quando os jornais não permitem que os leitores gritem, estão a abrir caminho para que um dia possam também ser impedidos de gritar.

Com os meus melhores cumprimentos

Pedro Tadeu

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt